Uma coincidência estranha hoje ser vinte e um de outubro. Foi num dia 21/10, uns 15 anos atrás, que a caixa de papelão chegou, com os dois bichos pelados que chamamos de Duda e Dudu. Abríamos os bicos à força, e goela abaixo fizemos descer muitas vezes bolinhos de pão com leite e um pouco de alpiste. Tal bebês. Mal piscamos os olhos e eles já eram capazes de comer todas aquelas sementes de girassol que comprávamos perto da Padaria dos Moura. Presente estranho esse, ganhar vida pra tomar conta.
Blue Light
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
Para começo de conversa, amado leitor, nós dois só estamos nessa relação sagrada de todos os sábados graças às tias maricotas da vida, que nos ensinaram a ler. Tia Maricota: era assim que o Lecy, professor de matemática, chamava todas as tias da 4ª série do mundo. Posso apostar que, em qualquer lugar do mundo, qualquer pessoa sempre se lembrará do nome de seu primeiro professor. Flávia e Alessandra, os nomes das minhas mestras, lá no Jardim Escola Quem-me-quer. De lá, lembro até das margaridas brancas no uniforme vermelho, da cartilha Sonho de Talita, dos lanches da tarde com a tia Arlece.
"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” Machado de Assis só disse isso porque não conhecia Guilherme, Alexandre e Davi. Meus filhos, minhas criaturas que estão correndo aqui, em volta da cadeira, pedindo Negresco enquanto escrevo, sujando a roupa com o cuscuz empolado que eu fiz de madrugada. Mãe que é mãe serve um prato queimado de vez em quando e diz que o gosto é assim mesmo. Cozinha e faz as unhas de madrugada, quando faz, e nunca mais sabe o que é sentar numa cadeira em silêncio, sozinha, pra escrever.
Meu nome não é Blue. Blue não é sobrenome nem nada. Foi o fim do Orkut, somado ao tema deste Light, que me fizeram viajar pela década de noventa, quando eu ainda não era a Blue. Eu, criança, esperando o próximo episódio de Eek! The Cat ou saboreando a ansiedade que só as crianças de 90 puderam sentir: pela aparição do Mestre dos Magos ou do Capitão Planeta. Eu vivi os carrinhos de rolimã. As pipas. E sobrevivi aos Backstreet Boys.
"Se se morre de amor?” O poeta já se perguntava isso há dois séculos. E eu também sempre me perguntei, antes mesmo de experimentar esse amor homem/mulher que é o caso da poesia. Lembro até a primeira vez que me questionei isso. A casa onde a gente morava estava em obras e tinha de tudo pelo terreno: pás, enxadas, restos de cimento e uma escada de madeira. Qualquer tristezinha e eu subia no alto da escada, como se fosse me jogar, esperando mamãe vir me acudir. Nunca vinha: sabia que era drama. E eu lá em cima pensava: será que esse amor todo ainda me mata?
Me sinto grávida quando ouço Tulipa Ruiz. Não essas grávidas discretas para quem a gente cede assentos preferenciais, mas aquelas grávidas enjoadinhas de quem a gente quer mesmo distância. O nome disso é memória.
Tulipa havia estreado com o álbum "Efêmera” uns meses antes de eu estrear no rol das mães de três filhos. Ter dois era normal, aceitável, mas três filhos era o ápice do desespero. No ônibus, quando uma senhorinha me cedia lugar e puxava papo sobre o meu estado interessante, o semblante sempre mudava ao saber que já era o terceiro. Só faltava pedir o lugar de volta.
"Eu não sou feia nada, eu não casei porque eu não quis! Homem na minha casa tem que ter compromisso e não vou botar filho no mundo pra passar fome!”, gritava a plenos pulmões a vendedora de biscoitos murchos da rodoviária. Uns cinco minutos antes, eu tinha custado a passar com meu filho pela roleta porque um senhor bêbado simplesmente empacou lá, exigindo o troco de um dinheiro que ele nem tinha dado. Entramos e sentamos num daqueles bancos onde os desafortunados da vida montam seus comércios de balas vencidas e biscoitos murchos. E eis que o bêbado veio logo atrás.
Quando dona Beatriz, 73 anos, morreu, não havia ninguém na porta do céu para recebê-la. Ocupado com os preparativos para acomodar as vítimas de mais um confronto em seu nome, Deus não notou sua chegada. Como se procurasse lugar para ficar, a senhorinha vagueou horas por aquele amontoado de nuvens. Chegou ao quarto de Deus e, na parede direita, havia uma estante abarrotada de livros de capas vermelhas e douradas. Em cima da escrivaninha, ao lado de um porta-retrato com um close bem bonito de Jesus, estava um desses livros. Curiosa, dona Beatriz começou a folhear as páginas.
Lisys colocou a máquina e as lentes na mochila, escovou os dentes e deu uma última ajeitada no cabelo de Isadora. O destino era até interessante — uma apresentação circense na praça, programa legal para espantar o inverno — mas Lisys realmente não sabia o que iria encontrar. Autômata como todas as mães, amarrou os sapatos de Isadora e olhou para o céu, pra ver se não iria chover. Programação de inverno de mãe é assim: vigiar o céu, a chuva improvável, a neblina, as roupas para secar.
"Eu vou contar pra minha filha como a Lua ficou feliz quando ela veio”. Ouvi isso durante uma conversa com Ramon. Sua filha, Flora, havia acabado de nascer e ele me contava que voltou pra casa de bicicleta, maravilhado, sorrindo frouxo e olhando para a Lua. Também eu, muitas vezes, observei a Lua, mas eu era a filha esperando pelo pai. Ocorreu aos deuses que colocar meu pai como caminhoneiro seria uma boa ideia. Apenas para o dono do caminhão, certamente, porque isso nos custou, a mim e a minha irmã, uma espécie de vazio incapaz de se preencher.