Há muito tempo ganhei um casaco preto impermeável que ia até os joelhos, de fecho éclair e botões, gola alta, todo forrado por dentro. Presente da minha sogra, que trabalhava em um hotel e, vez em quando, o pessoal que se hospedava lá esquecia um ou outro pertence nos armários. Depois de uns meses no limbo dos achados e perdidos as roupas e sapatos ganhavam novas casas, novos donos, novos corpos. E eu fui incluída entre os contemplados.
Blue Light
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
Gentil é um cara que faz jus ao nome. Puxa a cadeira, paga a conta, deixa a moça passar na frente, dá lugar aos cegos, aos velhos, às rebentas de rebentos ao colo. Já o vi devolvendo troco, troco alto até, ao cobrador do ônibus — que ficou com aquela cara de quem não entendeu nada até o fim da viagem. E Gentil lá, sentado, olhando através da janela do ônibus as gentilezas jamais efetivadas mundo afora. O rosto impassível de quem não faz mais que a obrigação.
Eu adorava vestir o vestido de noiva de mamãe, que ficava numa caixa em cima do guarda-roupa. E como toda menina de 12 anos, para acompanhar eu usava um par de sapatos pretos, de saltos altos, que ela tinha comprado para ser madrinha de casamento do tio Zé e tia Eliane. Botava a luva, passava batom. Pressa de ficar adulta.
Pegar uma caneta, um lápis, um aparelho eletrônico qualquer que seja para escrever sobre o Dia das Mães. Protelei a tarefa a semana inteira: pensei que iria nascer de mim mais um texto triste, a nota melancólica de quem enterrou a mãe com a mesma blusa amarela que havia dado a ela no aniversário. Não há como falar genericamente sobre mães, não dá pra não colocar a própria mãe no meio. Tudo que envolve mãe é saudade, tudo, até quem ainda tem a sua mãezinha já deveria estar sentindo saudades dela. Tudo que envolve mãe é amor, que tanto transborda quanto estia.
Eu sempre tive uma teoria louca, segundo a qual a Casas Bahia era uma das grandes responsáveis pelo declínio da família brasileira. Hoje sei que não é, ou talvez faça mesmo parte de um grande complô comercial maquiavélico apto a nos destruir, mas não do jeito exato que fantasiei. Explico.
A frase do título não é minha. É o nome de um dos livros de um escritor pernambucano chamado Fabiano Calixto — autor que nunca li, diga-se de passagem, mas com um título desses não tem como não gostar do cara. Não sei do que se trata a história, o título me ganhou por si só. A primeira imagem que me veio à cabeça foi a cena do Titanic em que os músicos se põem a tocar em meio ao desespero — literalmente ninando o naufrágio. A segunda imagem, um pouco menos óbvia e com ares de autoanálise, foi a de um cronista quando fala do mundo e de si mesmo.
Eu não posso dizer que sou grande amante dos animais, mas também não sou do tipo que chuta o rabo do gato quando as coisas não vão bem no ambiente doméstico. Digamos que seja uma relação de coexistência pacífica, sem maiores atritos, a não ser quando a cachorra enorme de gorda que mora na rua da escola das crianças resolve bocejar. Ela olha para dentro do meu cérebro, se levanta, empina o dorso e abre aquele bocão de mil e novecentos dentes.
De que matéria é feita a vida? A mesma que se constroem os sonhos? A mesma que nos organiza como espécie, homem e mulher, árvore genealógica, história, carteira de identidade? Qual é o fio invisível que nos une? De tão banais nossos gestos, o café que tomamos de manhã, três gotas de adoçante, manteiga no pão, conferir se trancou mesmo o portão, enfim, de tão banais nossos gestos, quantas vezes passam despercebidos?
A vida da gente é como uma viagem em linha reta e velocidade constante, mas sabe como é: tem gente que simplesmente não aprende a dirigir. Nem todo quebra-mola tem a faixa amarela gritando. Acidentes acontecem. É preciso estar atento. Uma freada brusca e lá vai seu nariz beijar o volante. Não sei vocês, mas eu sou do tipo que vive na corda bamba de sombrinha. Cochilo e saio da estrada, de vez em quando, ou viajo aos sobressaltos fazendo salto à distância com os quebra-molas. Ah, ok, esse textão comparativo e cheio de metáforas está num nível de breguice que, olha, benzadeus.
Às vezes encosto a minha cabeça no vidro da janela do ônibus do Cordoeira e vejo passar as ruas, os sinais de trânsito, as crianças correndo atrás das pipas ou fazendo barquinhos de papel; são quadros eternizados nessa minha massa cinzenta, são como filmes passando ininterruptamente numa tela dentro do meu cérebro.