Colunas
A escada
"Se se morre de amor?” O poeta já se perguntava isso há dois séculos. E eu também sempre me perguntei, antes mesmo de experimentar esse amor homem/mulher que é o caso da poesia. Lembro até a primeira vez que me questionei isso. A casa onde a gente morava estava em obras e tinha de tudo pelo terreno: pás, enxadas, restos de cimento e uma escada de madeira. Qualquer tristezinha e eu subia no alto da escada, como se fosse me jogar, esperando mamãe vir me acudir. Nunca vinha: sabia que era drama. E eu lá em cima pensava: será que esse amor todo ainda me mata?
Mesmo separados, mamãe ainda amava meu pai. Tudo em casa girava em torno dele, da volta dele. Todos os dias a gente fazia tudo sempre igual: esquentava o leite, botava o pão mineiro na mochila, eu estudava, ela costurava. À noite, novela das oito. E as noites passaram, os dias, os anos. Cadê que ele voltou...
Um dia, o Neso, um cara da igreja que eu frequentava na época, me disse que a gente errava quando esperava um sinal muito grande de Deus. Que Ele também estava nas pequenas coisas. E por mais que eu tivesse achado isso muito clichê, estranhamente segui. Fechava os olhos e pedia "papai do céu, não me deixa perder a hora da escola, não me deixa perder o ônibus, faz mamãe comprar sorvete hoje”. Já não me importavam os grandes sinais; passei a pedir miudezas de Deus. Ainda assim, esperava que meu pai entrasse por aquela porta, como quem aguarda em silêncio um elogio do orador no dia da formatura. Tratava este assunto com Deus como se fosse uma espécie de recompensa, que eu jamais recebi.
Ia me infligindo pequenas práticas diárias de castigo. Arrancava partes do cabelo, jogava água quente nas pernas, deixava de comer. Uma lógica absurda e eu tinha vergonha dela. Vi na TV um homem carregando uma cruz e se chicoteando; me identifiquei com a cena, eu entendi. "Depois dessa dor toda, o Todo-Poderoso vai recompensar.” Eu queria ver meu pai voltar, mas continuava agindo como se não merecesse. E entre a rejeição, as queimaduras e a dor de ter um deus que não me ouvia, ia chorar na escada da obra.
Muitas vezes ouvi que mamãe adoeceu de tristeza, e morreu por conta daquele amor todo que sentia pelo meu pai. Às vezes concordo, às vezes não. Não sei se se morre de amor, como Gonçalves Dias disse no poema. Acho só que a gente tem o direito de se sentir fraco de vez em quando. Se sentir carente, querer colo, fazer bobagem. Subir um degrau, descer cinco. Errado é não entender isso, negar sentimentos, olhar a dor do outro como algo anormal ou inexplicável. Quem tem o direito de dizer que o outro é maluco?
Nunca me tratei. Não fiz terapia. Até entendo que é necessário, mas vou levando, me tratando com amor. Com cicatrizes, mas com todo amor do mundo. Ontem soube que meu pai vai ter outro filho! Eu, 27 anos, ganhando outro irmãozinho. É a vida chegando! Às vezes me puno, às vezes sorrio... como sorri ontem. De verdade. Do alto da escada, a prece chegou a algum lugar. E trouxe meu pai de volta pra casa.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário