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Baleia
Uma coincidência estranha hoje ser vinte e um de outubro. Foi num dia 21/10, uns 15 anos atrás, que a caixa de papelão chegou, com os dois bichos pelados que chamamos de Duda e Dudu. Abríamos os bicos à força, e goela abaixo fizemos descer muitas vezes bolinhos de pão com leite e um pouco de alpiste. Tal bebês. Mal piscamos os olhos e eles já eram capazes de comer todas aquelas sementes de girassol que comprávamos perto da Padaria dos Moura. Presente estranho esse, ganhar vida pra tomar conta. Dudu passeava comigo, no meu ombro, morro abaixo; eu, a pirata do Belmonte e o papagaio que cantava Sandy e Júnior. Uma história de amor, de aventura e de magia... tema de novela das seis. Duda era mais retraída, falava pouco. Dudu lhe havia arrancado toda a pena da cabeça. Os dois foram os meus únicos animais de estimação na infância.
Mas uma verdade me corroía as entranhas, a qual eu era incapaz de confessar. Eu não gostava do trabalho que eles me davam. Não mesmo. Dudu gritava incessantemente "Oh, Géssica, vai lavar sua roupa que eu não vou falar mais não, hein... mais não, hein... mais não, hein...”, imitando o que mamãe me lembrava todas as tardes. Aquilo virou um círculo vicioso. Se mamãe não lembrava, o filho de uma égua fazia questão de lembrar e lá ia eu, cabisbaixa, danar a pele da mão com Omo Multiação. Vez ou outra eu tinha que lavar toda a gaiola, aquele suplício. Minhas mãos viviam bicadas, ardendo, de tanto tentar tirar Dudu e Duda lá de dentro. E ainda tinha que comprar o girassol e lavar as malditas roupas esquecidas no balde, providencialmente escondido atrás do tanque.
Os papagaios foram presentes de meu pai e me lembravam ele. Eu gostava, mas não gostava, sabe como é? Uma vez Duda fugiu, sabe lá como, e ficou fora muitos dias. E nesses dias, Dudu não falou, não me mandou lavar roupas, não cantou mais Sandy & Júnior. Até eu me ressenti, pelos parcos cuidados que lhes dei. Eu, uma criança, deveria gostar e querer ter um bichinho de estimação. Meu pai me permitiu até mesmo tirar onda na escola! Como sempre tive fama de exótica, nada mais cabível na minha varanda que um par de papagaios. Chorei por Duda muitas vezes, presente/lembrança de papai. Até que um dia, tal como do nada sumiu, do nada Duda voltou.
São ainda vivos, mas deixei-os para trás quando me mudei de casa. Pensei que com o vizinho teriam espaço, melhor gaiola, maior cuidado. Senti saudade nos primeiros dias, mas depois passou. Meses voaram até que os visse novamente. Dudu, quando me viu, gritou logo. "Géssica, vai lavar sua roupa que eu não vou falar mais não, hein”. Aí, nesse momento, fiquei triste de verdade. Aquele grito fez parte da minha história, me lembrou tanto mamãe. Com tanta dificuldade em casa, quando eu era criança ansiava o ano todo pelo Natal, doida pra dormir fora, ficar à mercê das comilanças abastadas de vovó Mariquinha... Mas mamãe não deixava. "Filho meu fica comigo, mesmo se estiver no perrengue”. Parece que não aprendi a lição. Larguei os meus no primeiro vislumbre de vida melhor.
Às vezes paro pra pensar se a vida deles estaria melhor se tivessem continuado comigo. Talvez não. Eu não teria dado atenção a eles. Eu vivo em outro planeta e lá os bichos vivem por conta própria, sem coleira nem gaiola. Não gosto da ideia de ter outra vida pra tomar conta, de pertencer a alguém. E, me justificando, creio que esse deva ser o verdadeiro sentido de amor.
Na minha cabeça, Baleia, a cachorrinha sofrida de Vidas Secas, não teria morrido com tanto medo de Fabiano. Lá, no meio da seca e da fome, mesmo que não houvesse justa alma a alimentar o menino mais velho e o menino mais novo, certamente, batendo de porta em porta, Fabiano encontraria quem adotasse Baleia.
Hoje, Peppa, nossa porquinha da índia gorda e bem cuidada, me redime desse mal que cometi. Deixar Dudu e Duda com o vizinho foi o meu tiro de misericórdia, a certeza de que passar fome é pior que morrer. Não tive escolha, mas talvez, de algum modo, tenha feito certo. Meus papagaios sonhavam com um mundo de galhos para pousar e muitos quilos de semente de girassol pra comer. Assim como Baleia esperava por verdes pastos, cheios de preás gordos, enormes.
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Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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