Deus dará

sábado, 11 de outubro de 2014

"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” Machado de Assis só disse isso porque não conhecia Guilherme, Alexandre e Davi. Meus filhos, minhas criaturas que estão correndo aqui, em volta da cadeira, pedindo Negresco enquanto escrevo, sujando a roupa com o cuscuz empolado que eu fiz de madrugada. Mãe que é mãe serve um prato queimado de vez em quando e diz que o gosto é assim mesmo. Cozinha e faz as unhas de madrugada, quando faz, e nunca mais sabe o que é sentar numa cadeira em silêncio, sozinha, pra escrever. As crianças tomam conta de todo o espaço onde os pés alcançam.

E os filhos, ah, os filhos. Esses seres que entram em discussões filosóficas seriíssimas sobre "mamãe, tem uma goteira no meu telhado, melhor conversarmos com o vovô Djalma sobre isso”. Num dia eles mal abrem os olhos e no outro, já conjugam verbos. Dificílimos. Eles gostam dos superlativos.  Deixo as goteiras de lado e entro nos supermercados arrastada e, conduzida pelo exército das crianças de 11, 5 e 2 anos, vou direto para a gôndola dos iogurtes. É a maior concentração de mães e filhos por metro quadrado do mundo. E ainda tem o Negresco. Mãe é assim mesmo: anda meio de lado, um andar metade "carreguei mochila de manhã”, metade "à noite vou colar maquete”. Mas andam todas belas, com suas crianças de ouro puro. Mães são todas alquimistas. 

Só quando Guilherme chegou que eu fui perceber o quanto os banheiros eram escorregadios e as tomadas, atrativas. Eu aprendi através dele que o preço não é pelo brinquedo, quem tem preço mesmo é o personagem. Que pão de cachorro-quente tem que encomendar com antecedência. Que porta fechada dentro de casa é um luxo. 

E, de porta fechada em porta fechada, cheguei ao segundo e terceiro filho. Todos meninos. Com eles vieram as jornadas triplas, quádruplas, quíntuplas quando os meses são de férias, greve dos professores ou dermatite. Sou expert em catapora. Nunca mais esqueci um celular em casa. Reverencio demais as avós. Eu conheço os desenhos da TV a cabo, os sapatos que acendem luzes e os melhores repelentes de mosquito. 

Esses meninos são a minha profissão de fé e o partido político que sustenta todas as minhas ideologias. Eles me fazem ser alguém que eu nunca teria sido. Então, ao contrário de Machado, quero construir um legado sem miséria para deixar a essas minhas criaturas. Gui, Ale e Davi, saibam que mamãe fica feliz quando vocês ficam rodando em volta da minha cadeira. Vocês motivam minhas orações todos os dias. Continuemos, todos, a rezar. Barquinho na correnteza: Deus dará.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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