Ariana, a moça feia da rodoviária

sábado, 30 de agosto de 2014

"Eu não sou feia nada, eu não casei porque eu não quis! Homem na minha casa tem que ter compromisso e não vou botar filho no mundo pra passar fome!”, gritava a plenos pulmões a vendedora de biscoitos murchos da rodoviária. Uns cinco minutos antes, eu tinha custado a passar com meu filho pela roleta porque um senhor bêbado simplesmente empacou lá, exigindo o troco de um dinheiro que ele nem tinha dado. Entramos e sentamos num daqueles bancos onde os desafortunados da vida montam seus comércios de balas vencidas e biscoitos murchos. E eis que o bêbado veio logo atrás.

Tenho medo de bêbados, sempre tive. Os conhecidos até que não me assustam, mas dos desconhecidos continuo tendo medo. Acho que tem algo a ver com um maluco que atacava as meninas com pedaços de garrafa em Conselheiro, quando eu ainda era criança e frequentava igreja aos domingos. Nos dias bons, eu rezava para que o bêbado doido não estivesse nas ruas. Nos dias ruins, eu rezava o contrário. Que ele aparecesse e me cortasse uma tira de pele, dessas que a gente tem que ir ao hospital dar pontos pra sarar. Que não machucasse muito, só o bastante para que meu pai, lá em Belém do Pará, de repente sentisse a necessidade de proteger a filha que ele largou pra trás e agora andava vulnerável por aí, levando garrafada de bêbados. 

Mas deste cara, em especial, eu não seria alvo. O alvo dele era a vendedora de biscoitos murchos. Não entendi qual o grau de parentesco ali, nem sabia se havia algum. Desconfio que sim, pois a crueldade com que ele se dirigia a ela era de uma intimidade que só parentes e amantes conseguem ter entre si. Ele gritava que ela era uma velha seca, que não casou e não teve filhos porque era feia demais. Que homem "andaria” ali, naquelas pelancas perebentas. Ou faria carinho naquele emaranhado de cabelo sujo. Ela não ouvia calada: ela xingava.  "Seu velho capeta, meu corpo é de Jesus e o seu é da cachaça. Não vou dar atenção, é o inimigo falando através da sua boca cheia de cáries.” É verdade, eu atesto e dou fé: eu vi a moça feia da rodoviária xingando para quem quisesse ouvir.

Até que o velho saiu de perto. E ela, como que justificando seu acesso de raiva, virou-se pra mim e disse que não era feia, não. Que ela tinha trabalhado o dia inteiro e não deu tempo de pentear o cabelo direito. Que não tinha sentido colocar roupa nova e bonita pra gastar na rodoviária. Disse que tinha 32 anos e que nunca botou homem dentro de casa porque a intenção dela era casar e ter compromisso, mas não conhecia um homem que valesse a pena. E mais uma vez repetiu que não era feia, mas dessa vez, não foi pra mim. Foi pra si mesma, tenho certeza. Me identifiquei. Quantos desses velhos bêbados já passaram por mim, talvez bradando a quatro cantos a minha feiúra perante a vida? A opinião pública é uma praga mais doente que o próprio hospedeiro.

Ela juntou sua barraquinha e partiu, meu ônibus chegou. A moça realmente não era feia, nos seus 32 anos à espera do príncipe encantado. E eu sei que ela merece um. Somos todas bonitas, às vezes apenas sem tempo de arrumar os cabelos direito. E aos velhos bêbados, não demos atenção aos seus despautérios. Aos perdedores, as garrafadas.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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