Colunas
Efêmera
Me sinto grávida quando ouço Tulipa Ruiz. Não essas grávidas discretas para quem a gente cede assentos preferenciais, mas aquelas grávidas enjoadinhas de quem a gente quer mesmo distância. O nome disso é memória.
Tulipa havia estreado com o álbum "Efêmera” uns meses antes de eu estrear no rol das mães de três filhos. Ter dois era normal, aceitável, mas três filhos era o ápice do desespero. No ônibus, quando uma senhorinha me cedia lugar e puxava papo sobre o meu estado interessante, o semblante sempre mudava ao saber que já era o terceiro. Só faltava pedir o lugar de volta.
Como sofrem essas mães. A mim não foi dado o benefício da complacência. Que me danasse, de pé, sacola pesada e filas compridas. Eu aprenderia, afinal, a não ultrapassar a cota modesta de duas crianças por casa. E quando o enjoo matinal me batesse tão forte quanto Drauzio Varela dizia que iria bater, que aguentasse quieta. Não era isso que eu tinha escolhido pra mim?
Nesses dias experimentei minha paixão por Tulipa. Sua música praticamente me alimentava, já que quase nada me parava no estômago. Ao som dela a gravidez passou mais rápido e o bebê nasceu mais gordinho.
No jornal, soube do show de Tulipa dia 11. Foi o bastante para que desenterrasse dos meus arquivos mentais o álbum dela que durante tantos meses foi como um mantra pra mim. De repente, não mais que de repente, me senti grávida. Não só isso: senti o sabor de todos os chicletes que masquei naquela época. Não sei o que a memória faz com a gente. Senti o julgamento na pele, de novo, por ser a mãe de três crianças antes mesmo de ser outra das musas de Balzac. E me perguntei: por quê? O que que os outros têm a ver com as minhas escolhas?
Durante um curtíssimo tempo, não era eu nesta cadeira, revisando o jornal de amanhã, escrevendo a crônica de sábado, sentada ao lado de Márcio e de frente para João. Nos primeiros acordes de "A ordem das árvores”, era eu grávida, deitada no chão de um apartamento sem móveis.
Acho que acontece com todo mundo, essa ânsia de re-viver alguma coisa. Não é preciso ser saudosista para voltar ao passado, mesmo que ele seja triste. Lembrar o sabor de um prato que só aquele alguém sabe fazer, o perfume que quase pertence a outro alguém. Eu mesma, já andei pelas ruas procurando o cheiro do xampu Darling na cabeça de desconhecidos porque esse cheiro me teletransportou muitas vezes para o colo de mamãe, para um tempo onde nada de ruim poderia me assombrar. Mas quando abria os olhos, eu era só uma doida varrida cheirando a cabeça das pessoas. Tão bom fantasiar, ter memória, ter história pra contar. Pena que a realidade nos torne efêmeras. E, uma vez efêmeras, percamos um pouco dessa eternidade que deveríamos ter. Nós, as mães de três filhos.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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