Ela fazia uma pesquisa qualquer sobre a palavra ‘chocolate’ no celular, talvez incomodada com seus alguns quilos indesejáveis, enquanto colocava o leite para esquentar. Rolou de página em página, sabe como é, até que chegou num link que dizia ‘dez passos para um dia mais feliz’. Uma moça de calça branca ao fundo; era um desses spots, feitos por homem, de uma propaganda de absorventes. É claro que dá pra ser feliz quando ‘se está mocinha’, claro que dá! (Ironia, tá gente? Bom, é sempre bom avisar).
Blue Light
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
Hoje, no finzinho de uma roda reunião de amigos aqui em casa, contei o dia em que eu saí danada da minha vida de casa pela rua de pantufas.
Foi assim: eu varri mal e porcamente a sala, que é onde vai gente arrumei a casa inteira, enfiando tudo no guarda-roupa, como de costume dobrei e guardei as roupas, acendi um incenso e fiquei aqui, no mesmo sofá onde estou espremendo o meu cérebro por uma inspiraçãozinha que seja sentada e escrevendo agora, entregue ao desânimo e à preguiça me deliciando com a paz que traz uma sala casa arrumada.
O pai, de nem um metro e meio de altura, entra no ônibus com a garotinha emburrada de cabelos cacheados. O ônibus dá a partida e vai chacoalhar no morro, que é pra mostrar que missão de pobre na vida é chacoalhar, mas a emburradinha insiste em ficar de pé.
— Tem que sentar, Patrícia! O ônibus vai encher e você não vai conseguir se equilibrar.
— Mas eu quero ficar em p...
— Senta, cacete!
Quando a gente quase não olha mais pra natureza, é como se não olhasse também para dentro de si mesma. Por muito tempo ficamos presos nas barreiras cimentadas, nas paredes de concreto das cidades, nas paisagens cinzas de fumaça de escapamento – e, quando paisagens coloridas, de grafite apenas. Brilhantes de pele oleosa e gordura de fast food, adaptados às brigas de trânsito, aos estresses do cônjuge, à falta de viço, chacoalhando os miolos pra lá e pra cá pelos buracos urbanos, fedendo a desodorante de farmácia.
No hospital, no corredor, esperando um diagnóstico frio e calculista para meus pulmões que mais uma vez entraram em estado de greve, eu dividia espaço com outros tantos portadores de misérias tantas, fazendo uso de seu sacrossanto direito ao sistema de saúde tão maravilhoso no horário eleitoral, mas tão diferente na prática, na hora da injeção na bunda. Homens e mulheres, temporariamente irmãos forçados, já que as portas entreabertas destes hospitais públicos não nos permitem nem privacidade.
Eu me acostumei a brincar sozinha. Depois das aulas, quando criança, esperava até que as professoras saíssem e roubava os cotocos de giz que jaziam no quadro-negro. Mamãe recebia em casa aquelas imensas e gordas listas telefônicas — éramos pobres, mas tínhamos um telefone, que na época era quase o preço de um Fusca — e eu me punha a arrancar página por página, espalhando-as no chão diante de mim. Eram as provas ou lições de casa dos meus alunos imaginários, com quem eu tinha muitas e filosóficas conversas sobre tudo: os afluentes do São Francisco, os números primos, as classes gramaticais.
Alto, magro, uns 50, talvez 55 anos, no máximo. E de terno. Sapato lustrado. Um dentre tantos outros homens de ternos cinzas e sapatos da Renver que almoçam ali, no mesmo restaurante em que eu costumo contar minhas moedas. Teria passado despercebido, como os outros, não fosse seu prato. Ele pôs cinco ovos fritos. E nada mais. Minto, tinha um pouquinho de purê de batata e umas azeitonas, coadjuvantes mínimas no meio daquela granja toda.
- Aquele desgraçado tem que morrer! - dizia a mulher, empapada de suor. O vestido de Varejão das Fábricas já era; o cheiro de suor e de sangue nunca mais sairia dali. O policial, na tabuinha da beirada do plantão, foi chamado. Deu tempo nem de botar o celular no bolso.
O ano era 98, 97 ou 98, não lembro bem. Estávamos na sexta série, aquele período nebuloso entre a despedida das barbies e o primeiro soutien. Eu estudava no Dermeval e tive poucos amigos lá; a Tetê, a Suzana, a Tatiana. O Luis Hernane, que foi o primeiro cara que me fez olhar no espelho e me sentir feia. Tinha o Márcio, o Marloan CDF que era ambidestro, o Eduardo. Eu não convivia muito com eles — só com Tatiana, que é minha amiga até hoje —, tinha uma puta fama de puxa-saco porque eu preferia a sala dos professores e a biblioteca, mas de vez em quando me pego pensando neles.
Nesses dias, nessas segundas-feiras em que chove o dia inteiro eu me sinto especialmente mais pobre e penso que publicar um livro pode me ajudar a melhorar na vida. Daí eu tento guardar causos do cotidiano pra contar. É claro que acontece muita coisa por aí, além dos meus olhos, dos meus muros e da minha vã filosofia, e eu tenho que escrevê-las, porque como diz a Clarice Falcão, quem vai comprar um CD sobre uma pessoa só? Hoje, por exemplo, li num site que meu segundo nome foi inventado por Shakespeare. Jéssica. Eu faria uma crônica, talvez, sobre uma bela garota chamada Jéssica.