Eu poderia ter escolhido o que quisesse de presente no meu aniversário de quinze anos — resguardando, claro, a condição financeira da família, que nunca foi lá essas coisas. Poderia realmente ser o que eu quisesse, desde que não latisse — "Você não sabe nem tirar as calcinhas do box do banheiro, como é que vai querer ganhar um cachorro?” — e coubesse no nosso orçamento esquelético, a que eu estava bastante acostumada, por sinal.
Blue Light
Ana Blue
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O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
Quantas histórias começam como as minhas. Uma mãe sem emprego, um casamento que não deu certo. Um pai que vai embora. Uma caixa de correios que não entende divórcio, depressão, câncer, anemia. E permanece soberana, com a sua função única de cuspir más notícias.
No fim, quando eu acabei de lavar a louça do jantar, saí quase como Arquimedes no episódio "Eureka, eureka”, mas no meu caso seria algo como "Estou curada, estou curada”. Acontece que sou acometida de pequenas manias, pequenas mesmo, talvez passassem até imperceptíveis, não fosse a louça do jantar me jogar no colo o tema para uma crônica: essas obsessões as quais nos agarramos.
Eu não desviei mais os olhos da fruteira de aço inox. Presente de casamento, talvez, pois não me lembro de tê-la comprado. Com os anos, ficou difícil reparar os móveis pela casa: as coisas todas estavam como nascidas ali, brotadas da areia e do cimento que uniam os blocos de concreto e formavam chão, paredes, teto. Eu mesma, naquele sábado de carnaval, estava ali como que parte da mobília, esperando completar o ciclo de lavagem pesada da máquina de lavar. Foi quando ouvi "Felipe, não me deixa sozinho aqui, volta aqui”.
"Quem foi que te consagrou senhora da razão?” Na verdade ela nem disse isso, mas pela cara feia pode-se dizer que era isso que ela estava pensando. Eu tinha mesmo a tendência de fazer o que dava na telha, o ouvido era o único buraco do meu corpo que eu ainda não tinha dado pra ninguém. Me enfiei num traje pouco ortodoxo de odalisca e fui pra avenida, depois pro Xadrez e pro 50. Joguei pro alto muita serpentina. Voltei a namorar o pilantra do Julio naquele carnaval. Mãinha inda avisou: vai subir é morro atrás desse cachaceiro. Dito e feito. Casamento chinfrim esse meu.
Marina Colasanti, certa vez, escreveu um conto sobre duas mulheres que se encontram no elevador; uma delas segurando uma bolsa lilás. A outra, curiosa, comenta sobre a ousadia de se ter uma bolsa lilás, ao que a primeira responde: "Acabei de dizer a um homem que eu o amo. Então entrei numa loja e, entre todas, escolhi essa bolsa. Eu precisava sentir nas mãos a minha audácia”, disse ela, sem sorrir, sem esboçar reação, apenas se agarrando náufraga à alça. Coincidentemente ou não, tenho peças extravagantes de vestuário, como que guardadas para ocasiões em que também deva provar ousadia.
Bem no meio da quarta série, lá pelo mês de julho ou agosto, os dias ficaram agitados para nós três, as mulheres. Passávamos as tardes a arrumar as malas, a preparar os filmes de 36 poses. Mamãe comprou uma Kodac preta pequenininha, um luxo na época para a classe C. Minha irmã e eu subimos na carroceria, papai guardou as malas e seguimos rumo a Belém.
Dos presentes que ganhei na vida, o mais inusitado foi um passarinho curió, a quem batizei de Chico. A ele demos o privilégio de morar numa gaiolinha sem o menor conforto, no quintal de casa. Chico cantava dia e noite, interrompido apenas pela Ave-Maria que tocava às 18h na rádio que mamãe ouvia. Nessa hora o curió trancava o bico, com o mais genuíno respeito cristão, e só voltaria a cantar na manhã seguinte.
"Àquela altura, ela já deveria saber como lidar com essas coisas. Não era a primeira vez; e como Deus talvez não existisse pra fazer justiça, provavelmente não seria a última.”.
Tecnicamente, ela seria meu inferno astral. Pelo menos é o que João Bidu me disse a adolescência inteira. Mas de todos os seres apressados que fincavam forte seus pés pelos corredores da repartição, ela era a única que flutuava. Como uma aparição. Xinguei-a secretamente muitas vezes, de biscate e outros tantos nomes feios. Era o meu ritual, antes de saber que se eu era metade até então, a outra metade de mim era ela.