Adolfo Martins – Presidente

sábado, 24 de janeiro de 2015

Marina Colasanti, certa vez, escreveu um conto sobre duas mulheres que se encontram no elevador; uma delas segurando uma bolsa lilás. A outra, curiosa, comenta sobre a ousadia de se ter uma bolsa lilás, ao que a primeira responde: "Acabei de dizer a um homem que eu o amo. Então entrei numa loja e, entre todas, escolhi essa bolsa. Eu precisava sentir nas mãos a minha audácia”, disse ela, sem sorrir, sem esboçar reação, apenas se agarrando náufraga à alça. Coincidentemente ou não, tenho peças extravagantes de vestuário, como que guardadas para ocasiões em que também deva provar ousadia.

Mas foi um pequeno pedaço de papel retangular, com uma escrita muito elegante em azul e dourado — onde lia-se "Adolfo Martins – Presidente” — a minha grande prova física de audácia. Naqueles dias, uma redação minha de escola foi escolhida como uma das vencedoras de um concurso do estado em parceria com um grande jornal do Rio de Janeiro. Foi o meu primeiro prêmio e meu primeiro salto alto. A primeira vez que viajei independente para a capital, com as duas diretoras da escola somente, sem mãe, sem pai, de roupa nova, com dez reais no bolso e um sapato mais alto do que eu podia me equilibrar. Eu usava uma camiseta branca da Hering, daquelas que vinham com um símbolo da luta contra o câncer de mama. Era a primeira vez que eu revertia renda para uma causa social.

Na cerimônia de premiação, quando chamaram meu nome, cumprimentei-os um a um, na mesa, como mamãe ensinou, aperto forte de mão, postura ereta, uma boa encarada no fundo dos olhos. Ao chegar ao presidente do jornal, uma coisa qualquer me soprou no ouvido, algo de escuridão e rutilância, como diria dos Anjos, e as palavras saíram quase como carrinhos descontrolados de kart, diretamente de dentro da minha boca para o fundo do buraco do ouvido do homem à minha frente: "Senhor presidente, guarde bem o meu rosto. Ainda vou trabalhar no seu jornal”.

Deve ter soado engraçado para aquele simpático senhor que uma aluna de 15 anos, no meio do ensino médio, pudesse ter como plano de vida ser colunista de um jornal de concursos, mas ele não sorriu. Abriu a carteira seriamente e me entregou um cartão de visitas, Adolfo Martins – Presidente. "Assim que você se formar na faculdade, me procure”.

A faculdade veio apenas 12 anos depois. A vida pregou muitas peças, pregou mamãe na cama, doente, pregou muitas contas na porta da geladeira. Ficou pra depois, ou talvez tenha sido puro desleixo meu, mas o fato é que duas dependências em química me impediam de terminar de vez o ensino médio — e consequentemente, eu não poderia mesmo ir para a faculdade. Foi um 990 no Enem que me abriu as portas. Me formei e me inscrevi no Cederj.

A princípio, quando padre Paco me mantinha à base da caridade no colégio católico, ou quando demorava 45 minutos para chegar à escola, do Belmonte a Olaria, educação parecia sacrifício. Foi difícil entender que aquilo ali seria a minha salvação no futuro. Minhas melhores lembranças são de escolas, salas de aula, prêmios de redação. Estava escrito isso para mim? Com letras em azul e dourado? Aquele cartão foi a primeira mostra do destino que queria ter; pena o tesão inefável da criançada por papel tenha destruído o cartão do senhor Adolfo, embora eu me imagine, vez em quando, em sua sala, tomando café expresso e comendo bolinhos.

Aprender é uma audácia. Minha avó, ano passado, disse que ia morrer sem saber que "se misturar azul com amarelo vira verde”, e ela disse isso poucos dias antes de realmente morrer. Ela tinha 84 anos. Eu entrei para a faculdade com 20 e poucos. No primeiro dia, fui com a roupa mais extravagante que poderia usar. Na dinâmica de apresentação, resumi minha história. Eu estava orgulhosa de mim, mas com medo. Estava feliz, mas não sorri. Para onde os caminhos do conhecimento iriam me levar? Que Deus me ajude a dar aos meninos a mesma educação que recebi.

Era tudo novo demais. Lembrei de Adolfo e de minha promessa de vida acadêmica. Depois da apresentação de toda a turma, deitei a cabeça na mochila, repleta de livros, e me agarrei, náufraga, à alça.

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Ana Blue

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O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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