Um saco de goiabas

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Eu não desviei mais os olhos da fruteira de aço inox. Presente de casamento, talvez, pois não me lembro de tê-la comprado. Com os anos, ficou difícil reparar os móveis pela casa: as coisas todas estavam como nascidas ali, brotadas da areia e do cimento que uniam os blocos de concreto e formavam chão, paredes, teto. Eu mesma, naquele sábado de carnaval, estava ali como que parte da mobília, esperando completar o ciclo de lavagem pesada da máquina de lavar. Foi quando ouvi "Felipe, não me deixa sozinho aqui, volta aqui”.

Em seu favor, a enorme vara de bambu entre os míseros dedinhos, mas por mais que se esticasse, não havia modo de alcançar as frutas no pé. Muito pequeno e muito magro, o menino já não tinha força para chamar o irmão, o tal Felipe. Observei por um longo tempo os gritinhos abafados da criança, olhos fixos no topo do morro, onde o irmão parecia esnobar de propósito seus chamamentos chorosos. Mas não soltava de jeito nenhum a vara de bambu, instrumento de caça. Naquele caso, especificamente, caça à goiaba: na frente de minha casa, quase invadindo o quintal, uma enorme árvore carregada de goiabas, ostentando toda a fartura alimentícia que não existia nas despensas daquela rua. Só que, por mais que se esticasse, por mais que gritasse pelo irmão, o menino não conseguia alcançar as goiabas.

Chamei-o. Ele olhou o muro, quase considerando pulá-lo. Ainda hoje me pergunto por que o garoto não tocou a campainha, por que não me pediu para abrir o portão. Desconfiado e humilhado, olhos fixos no muro, só dizia baixinho "roubei fruta não, moça, roubei não”. O desconforto era visível, quase palpável: ele muito mal encostou um dos pés no piso branco da cozinha. "Aquelas goiabas estão verdes”, disse eu, "tenho umas aqui, trouxe da feira na cidade”. "A senhora me dá duas? Meu irmão também está com fome”. O irmão que não lhe dera ouvidos.

Minha fruteira de aço inox ao lado da geladeira estava cheia de goiabas. Coloquei-as numa sacola de mercado. O menino, envergonhado, ainda me disse: "Moça, vou falar que a senhora me deu, não. Mamãe não gosta”. Não tem problema, criança, diz a ela que a árvore estava carregadinha. O reflexo dos meus olhos no aço da fruteira estava cheio de lágrimas.

Aquele pirralho magrelo virou um gigante subindo o morro, com o saco de goiabas nas mãos. E eu sei que essa história não dá enredo, não vira bestseller nas livrarias. É só um caso cotidiano entre um menino e um saco de goiabas. Mas desde esse dia não consigo olhar a mobília de casa, os vestidos caros, o meu carro na garagem. Será que o menino já tem o que comer? Fiz errado em dar-lhe as frutas, devia ter deixado que continuasse tentando, que o irmão viesse socorrê-lo? Logo eu, que li todos os livros, que viajei o mundo e que hoje, velha, tornei-me parte dos móveis que gastei tanto dinheiro para bancar. Encucada com um menino e seu soldo do dia. E sem respostas. Quantas bocas aquele saco de goiabas alimentou? Não há nada que doa mais que a fome. E a fome nunca é perfeitamente descrita nos livros.

O que mais me intriga hoje é a vara de bambu esquecida em um canto do quintal. O menino não voltou para buscá-la.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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