Colunas
Geração de 85
"Quem foi que te consagrou senhora da razão?” Na verdade ela nem disse isso, mas pela cara feia pode-se dizer que era isso que ela estava pensando. Eu tinha mesmo a tendência de fazer o que dava na telha, o ouvido era o único buraco do meu corpo que eu ainda não tinha dado pra ninguém. Me enfiei num traje pouco ortodoxo de odalisca e fui pra avenida, depois pro Xadrez e pro 50. Joguei pro alto muita serpentina. Voltei a namorar o pilantra do Julio naquele carnaval. Mãinha inda avisou: vai subir é morro atrás desse cachaceiro. Dito e feito. Casamento chinfrim esse meu. Mas naquele dia eu ouvi alguma coisa? Coisa nenhuma. Eu fui é pular carnaval, feliz da vida.
Pulei carnaval, pulei igual macaco, depois pulei na lambreta de Julio. Bem verdade que a gente bebeu uns ponches, mas nem que eu fosse vidente ia imaginar que a noite terminaria na Santa Casa. Viramos a lambreta. Levei quatro pontos no joelho esquerdo. Julio quebrou dois dentes.
Mas eu amava aquele broto, mesmo desdentado. Mãinha teve um siricutico. "O quê, Maria Suzana? Você estava com aquele desocupado? E ainda caiu de moto? Eu já perdi a conta de quantas vezes eu já proibi você de sair com aquele...” Nessa hora do sermão eu apaguei. Eu ia casar com ele de qualquer jeito. E nem queria saber se ele não tinha emprego ou se era filho de bicheiro. Eu que sabia o que era melhor pra mim. Assim falou a garota de 17 anos com quatro pontos no joelho, ocasionados pela desobediência à ordem paterna de "não dar confianças àquele bêbado”. E mamãe parada na porta, o robe de chambre tremendo de raiva. "Quem te consagrou senhora da razão, Maria Suzana?”.
Não me arrependo dos carnavais que pulei. Poucos antes deste, muitos depois. Mas os de depois vieram junto com a maternidade. As mamadeiras tomando o lugar das bebedeiras. A cozinha tomando o espaço do salão. Mas, ainda assim, aqueles eram os verdadeiros carnavais da família: porque a gente tinha segurança, e não porque a cidade fazia uma programação porca e sem graça, como acontece hoje em dia. Naquele tempo a gente pulava tranquilo. Soltava criança na rua. Lenita mesmo, dançava como se não houvesse amanhã. Mas chegou o dia em que mataram o filho da comadre Jandira no dia do desfile de carnaval. E depois também teve a história da criancinha que foi sequestrada no carnaval e nunca mais apareceu. Foi o mundo que mudou? As pessoas... Ou será que fui eu? Eu lembro perfeitamente de Lenita vestidinha de pirata, correndo toda a vizinhança atrás dos mascarados. Aliás, lembro de muitas madrugadas em que fui rebocar o Julio no bar, vestido de piranha pobre com uma Havaiana muito da vagabunda. E ninguém nunca mexeu comigo. Hoje as meninas têm que sair em grupos de 15 se quiserem pular carnaval sem nenhum machinho inconveniente vir fazer esses pseudo galanteios de jerico.
Aliás, eu até pedi isso pra Lenita hoje. Minha filha, sai com as amigas da faculdade. Não vai sozinha. Ou vai com o Robson, aquele rapaz é tão simpático, educadinho... "Ih, mãe, sai fora. Aquela camisa pra dentro das calças com aquela fivela de cinto do tamanho de uma coxinha me dá ânsia”. Claro que ela não saiu com o Robson, ela foi com o Diego, aquele pilantra. Olha, a minha vontade é sair dessa casa e trazer a Lenita de volta pelos cabelos. Menina insolente. Se arrumou e foi embora. Se vestiu de menino! Disse que era pra um tal de bloco das piranhas, que eu prefiro nem saber do que se trata. Já são 2h37 e eu não fechei o olho. Vou ficar nesse sofá até essa desgraçada chegar em casa inteira, sem nada faltando. Como é que pode ir pra carnaval, com todo esse perigo, ainda mais com esses negócios de facebook, de uatizapi, que você conversa com a pessoa e nem sabe se a pessoa é a pessoa que ela diz que é. Minha época que era boa. Mas hoje não. Hoje tem é assaltante, drogado, esses homens do mal, esse Diego, que não deve nem ter emprego!
Ai, Lenita, quem foi que te consagrou senhora da razão?
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário