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O curioso caso do curió Chico
Dos presentes que ganhei na vida, o mais inusitado foi um passarinho curió, a quem batizei de Chico. A ele demos o privilégio de morar numa gaiolinha sem o menor conforto, no quintal de casa. Chico cantava dia e noite, interrompido apenas pela Ave-Maria que tocava às 18h na rádio que mamãe ouvia. Nessa hora o curió trancava o bico, com o mais genuíno respeito cristão, e só voltaria a cantar na manhã seguinte.
Nunca fui mulher de plantas, animais ou ponto-cruz ou qualquer coisa caseira e amável, portanto, meus animaizinhos padeceriam por minha negligência, não fossem os olhos atentos das outras mulheres da casa. Mas o curió, curiosamente, era como um amigo, com quem eu chegava até a conversar; mesmo que, na sua sapiência de bicho que voa, jamais me respondesse. Um dia abri a porta da gaiola, atormentada pela privação de liberdade que eu lhe impunha, mas ele nem se mexeu. Nem piscou. Olhos tristes no poleiro, já não olhava a mata verde a sua volta. O pássaro proletário cumpria sua função até às 18h e depois disso esperava morrer. Hoje eu o entendo.
Até que chegou o ano-novo. Minha avó passava aqueles últimos dias de dezembro a temperar carnes e montar pastéis. Eram os dias mais agitados do ano para nós, as crianças. A casa cheia, naquela época eu adorava ficar com a casa cheia de gentes e comidas. E Chico, que não tinha férias escolares, continuava a cantar.
No dia 31 meu primo, até hoje não entendi por que, pegou a espingarda do meu pai — pasmem, ainda criança eu já tinha acertado muito tiro de espingarda em garrafa vazia — e apontou para a namorada, brincando. E, tão súbito quanto a brincadeira começou, terminou de modo quase trágico: a espingarda disparou.
Os acontecimentos depois disso ficaram turvos na minha cabeça. Minha avó gritou. Muito. E, por mais que eu tente, não me lembro do meu primo e a namorada, só lembro do rosto quase em transe de vovó gritando. Uma experiência de quase morte — dos outros — com cheiro de pastel de queijo. Aliás, naqueles breves segundos devo ter feito uma análise bastante séria, ou o que é possível ter de seriedade aos 10, 11 anos, de como a vida pode partir em menos de um segundo. Ali a festividade de ano-novo passou a fazer sentido pra mim. É preciso celebrar a vida, encarar a dificuldade e vencer a morte (bem, a ordem dos fatores desta frase depende do momento que se está vivendo. Às vezes, como neste caso, vencer a morte já pode ser o suficiente).
Foram 30 segundos de histeria coletiva, o tempo que todos levaram para perceber que o tiro tinha atingido a gaiola do Chico, que, mesmo tendo sido tomado por um desespero frenético, saiu ileso. Naquele ano-novo os fogos, as lentilhas, até a espuma do Cereser tiveram outra cor pra mim. É preciso celebrar a vida, sempre, nos aniversários, no café da manhã, no Réveillon, na saída do dentista. Até meu passarinho, depois do susto, começou a cantar em horas menos restritas, como no Jornal Nacional e na novela das oito.
Resolvi soltá-lo, de novo. E dessa vez, ele entendeu o que a gente precisava. Chico deixou o poleiro e foi cumprir a sua verdadeira vocação na vida, que é voar.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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