Uma violinista no telhado

sábado, 08 de novembro de 2014

"Àquela altura, ela já deveria saber como lidar com essas coisas. Não era a primeira vez; e como Deus talvez não existisse pra fazer justiça, provavelmente não seria a última.”.

Anastácia era exímia violinista, antes até de saber o que significava exímia. A mãe meio que se projetou nela: todos os sonhos, todos os gostos. Ainda adolescente, a mãe se viu entre dois extremos, como num quadro de Chagall. Ou choraria corpos a vida inteira ou subiria no telhado com seu violino, para ouvir a grande melodia divina. Encarar a vida alheia aos percalços ou baixar de vez seus grandes olhos tristes? A mãe preferiu encarar. E decidiu que quando tivesse filhos, eles seriam mais que lavradores. Eles teriam dias coloridos.

Por isso, assim que a pequena Anastácia nasceu, fruto de bebedeira inocente com rapaz desconhecido da capital, a mãe começou as economias para transformar a filha numa versão acertada de si mesma, melhorada, com todos os softwares atualizados. Alguém com o diploma do científico. Alguém que um dia pudesse viajar para conhecer o mar, ir para hotéis caros, dormir em lençóis macios com cheiro de sabão. Anastácia aprendeu inglês, secretariado, datilografia, violão. Fez até curso de gastronomia. E, por causa do filme preferido da mãe, aprendeu a tocar violino.

Foi graças ao professor de violino, inclusive, que ela conseguiu o primeiro emprego. Beto Viola, como era conhecido, tocava qualquer instrumento que lhe caísse na mão. E sua fama correu até a casa do prefeito — glutão que não hesitava em arrumar bons motivos para banquetes. Viola animava os jantares nada oficiais com sua banda Amadeus Carioca, que misturava música clássica com os cavaquinhos dos sambistas. Um dia, indicou Anastácia para preparar o menu de um dos eventos.

Aí que a fama do prefeito começou a bombar. No final dos jantares, Beto mandava chamar Anastácia, le petit chef, e a apresentava à sociedade. Após os aplausos, o menino do som trazia dois violinos e Anastácia e Beto executavam trechos de As Bodas de Fígaro debaixo de aplausos ainda mais efusivos, completamente ignorantes sobre a obra — que satirizava justamente a sociedadezinha fondue de mignon. A ovação era o jeito de o exército da barriga cheia reconhecer um talento — que pegava dois ônibus pra casa e jantava molho Tarantella com macarrão goelinha e salsicha antes de ir dormir.

Num jantar de Natal, o prefeito recebeu o governador. Isso foi um verdadeiro acontecimento, inclusive para Anastácia. Foi uma festa de fim de semana inteiro e ela continuava a cozinhar e tocar, cozinhar e tocar. Desta vez, os familiares dos serviçais foram convidados para o banquete — o governador iniciava sutilmente sua campanha. A mãe de Anastácia nunca tinha sentido tanto orgulho. A filha violinista cozinhou toda aquela fartura de faisões e frutos do mar e bombons finos, com chocolate do bom. E, no fim, tocou para o governador. Ela sabia que tanta esfolação de pele no meio das plantações de arroz ia chegar a algum lugar.

Mas foi só na noite do segundo dia, ao se recolherem para seus aposentos na casa de empregados, que mãe e filha perceberam a miséria de salário que o prefeito pagava para Anastácia. Só o sabonete do banheiro devia custar o que elas gastavam em um mês de produtos de limpeza no Guanabara. Os lençóis macios, importados, tão brancos, meu Deus, tão brancos que a escassa paleta de cores na cabeça de Anastácia quase resetava. Da pequena janela, observavam os outros empregados a recolher os restos que ficaram nos pratos, enquanto Viola guardava os instrumentos na Kombi. Depois da soberba festa no palacete da Avenida Leonel de Moura Brizola, seguiriam todos para o mesmo morro, as mesmas casas de reboco cru, as mesmas paredes mofadas, onde as barreiras do último dezembro repousavam em descanso eterno. Àquela altura, ela já deveria saber como lidar com essas coisas. Não era a primeira vez; e como Deus talvez não existisse pra fazer justiça, provavelmente não seria a última. Naqueles momentos, os dias deixavam de ser coloridos.

No ano seguinte, Anastácia finalmente largou o prefeito. Fez muita dívida. Passou dias à base da água na geladeira. Enfiava case e violino debaixo do braço e ia para a praça ganhar umas oito ou nove notinhas de R$ 2 antes de os fardadinhos do glutão chegarem para rebocar tudo aos pátios municipais de apreensão. À noite, sentava-se na soleira da porta e observava as roupas no varal, aguardando o sol chegar. Bermudas, meias, lençóis eram os grandes amigos das madrugadas, quando ela esperava a mãe dormir para entrar no barraco. Tudo para não enfrentar aqueles grandes olhos tristes.

Há mais ou menos 15 dias, Anastácia estava se apresentando em frente a um bar no centro da cidade, quando a equipe de filmagem chegou. O diretor, encantado, tomou 6 bourbons observando a branquinha de 1,58m ao violino. Chamou-a para almoçar e ofereceu uma vaga para a composição da trilha do filme. Ela e seu violino.

É um filme de orçamento milionário, com distribuição nacional. A equipe gravou umas cenas na cachoeira da cidade e voltou para a locação principal, na capital. Estão ajeitando um apartamento de dois quartos e sala e quinto andar com elevador para a Anastácia morar com a mãe. Orgulhosa, porque a filha vai estar nos créditos de um filme muito famoso. Da janela do quarto, dá pra ver o mar — e a visão é muito mais bonita que as piscinas azuis da Avenida Leonel Brizola. Anastácia vai comprar camarões graúdos e fazer um jantar festivo. A Amadeus Carioca inteira vai descer de Kombi para brindar mãe e filha, que finalmente dormirão em lençóis branquíssimos, importados, com aquele cheiro maravilhoso de sabão. 

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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