Colunas
Pra que tanta capa, meu Deus
Quando a gente quase não olha mais pra natureza, é como se não olhasse também para dentro de si mesma. Por muito tempo ficamos presos nas barreiras cimentadas, nas paredes de concreto das cidades, nas paisagens cinzas de fumaça de escapamento – e, quando paisagens coloridas, de grafite apenas. Brilhantes de pele oleosa e gordura de fast food, adaptados às brigas de trânsito, aos estresses do cônjuge, à falta de viço, chacoalhando os miolos pra lá e pra cá pelos buracos urbanos, fedendo a desodorante de farmácia. A gente se acostuma às formas quadradas e, por se acostumar, acredita que viver é assim mesmo. Que o mundo é assim mesmo. Viver bem é só no feriado – e no feriado às vezes a gente dorme o dia inteiro. Feliz é o outro.
É preciso pertencer a algum lugar, determinado antes pra nós, e por nós para quem vem depois. Ter endereço fixo e sobrenome de família. Ter conta-poupança, casa varrida e internet. Calcinhas e soutiens que combinem, cuecas que não soltem elásticos. Oferecer café pra visita, que se senta num sofá com capas. Botijões com capas, eletrodomésticos com capas. A gente inventa capa até pra janela, cortina, pra cobrir até o pouco de luz que ainda entra. Às vezes, apenas filetes que se esgueiram entre os vãos dos prédios e mal têm forças pra invadir as janelas. Enchemos a parede de quadros de lugares que jamais poderemos ir, porque não temos tempo e nem dinheiro e, pensando bem, nem boa companhia. Até controle remoto tem capa. E a gente se obriga a achar isso tudo procedimento de bom tom, mesmo quando a vontade é saltar descalça pela grama da cidade, sem CEP nem identidade nem cobertura de saúde ou plano funeral. Com suor e sem maquiagem. Sem nada que nos esconda.
Marina Colasanti tem um texto que diz que a gente se acostuma, mas não devia. Se acostuma a não olhar pra janela, a não olhar pra árvore, a não olhar pro mar nem pra montanha. Se acostuma a não olhar nos olhos pra não parecer azaração barata. Se acostuma a não olhar pra baixo, pra não ter as tardes confrontadas com os mendigos que entre cachorros e notas de dois reais amassadas nos pedem um dinheiro que a gente no fundo, no fundo, também não tem pra dar. Não olha pra cima, não olha pro lado, a gente se acostuma a simplesmente não olhar pra lugar nenhum que não seja o brilho fosco de uma tela que nos conecta com o mundo, mas não nos une a ninguém.
A gente se acostuma, mas não devia. Acostuma a olhar o pouco como suficiente e o muito como utopia. E o presente como se fosse coisa alguma, fase, karma, necessidade fisiológica. Se acostuma a não olhar pra frente, a não fazer planos, a ser imediato, a não ser ridículo. Perde o prazer das coisas simples. Perde o prazer dos beijos sem batom e um pouco desengonçados. Perde a liberdade que é poder ter frizz nos cabelos, fios brancos, hálito de café. Fica embasbacado quando vê uma borboleta ou qualquer outra cena bonita. E sai correndo quando conhece alguém que não pede nada em troca. Afinal, a gente sabe que ninguém mais quer cuidar da gente. Aí não olha mais pra fora. A gente se acostuma... mas não devia.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário