Champignon

segunda-feira, 06 de junho de 2016

Eu me acostumei a brincar sozinha. Depois das aulas, quando criança, esperava até que as professoras saíssem e roubava os cotocos de giz que jaziam no quadro-negro. Mamãe recebia em casa aquelas imensas e gordas listas telefônicas — éramos pobres, mas tínhamos um telefone, que na época era quase o preço de um Fusca — e eu me punha a arrancar página por página, espalhando-as no chão diante de mim. Eram as provas ou lições de casa dos meus alunos imaginários, com quem eu tinha muitas e filosóficas conversas sobre tudo: os afluentes do São Francisco, os números primos, as classes gramaticais. Era falta de ter com quem falar, talvez, ou mesmo desejo de me fazer importante. Professoras eram importantes, e eu queria ser uma delas. Devo ter formado um sem-número de doutores imaginários, gosto de pensar assim. Melhor que admitir que eu estraguei todo o guarda-roupa da minha mãe com giz ou que eu passei anos da minha vida conversando com as paredes do quarto dela.

Mas um dia, no auge da minha mocidade, ele chegou. Sorrateiro como o Batman, lindo como o Clark Kent. Soturno como o Zé do Caixão. Quando percebi, já o tinha dentro de casa, deitado no meu sofá de estampa de zebra, roubando nuggets da Perdigão de dentro do meu prato. Adorava cozinhar para ele. Eu trabalhava o dia inteiro, me entupia de self-services e até já bebia vodka direto da garrafa, mas nada disso me importava. Me importava chegar em casa, deitá-lo em meu colo, contar o meu dia, inventar detalhes que gostaria que tivessem realmente acontecido. Era um exercício.

Ele parecia atento. Sua serenidade calada me ajudou a tomar decisões. Ele parecia gostar das músicas que eu punha pra tocar. Se emaranhava nas minhas pernas e assistíamos à novela: uma família, ele e eu. Mal pude acreditar quando o vi com outra mulher.

Não foi de repente: eu deveria ter criptografado os sinais. Ele, que sempre estava em casa quando eu chegava, passou a não mais estar. Voltava tarde da rua. Começou até mesmo a não voltar. Já não havia carinho entre nós: quantas vezes comemos em silêncio. Eu ouvia o barulho do portão, quando ele chegava, três, quatro, cinco da manhã. Eu não passava de comida grátis.

Dizem que quem ama de verdade quer ver a felicidade do outro. Vê-lo feliz sem ser comigo me fez perceber que é verdade. E aceitar que meu gato, meu companheiro, meu amigo não era meu. E mesmo que fosse, arranjou outra dona. De um modo que não sei explicar, todas as vidas seguiram felizes: falta faz mais falta quando a gente é criança do que quando é burro velho. 

O pote de Whiskas dele ficou quase intacto no armário, estou pensando em doar. A coleira com seu nome, Champignon, joguei-a fora. Desde então, eu voltei a conversar com as paredes. Brincar sozinha. Mas com a serenidade das mulheres que educam os meninos.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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