Mais uma vez, asma

sexta-feira, 24 de junho de 2016

No hospital, no corredor, esperando um diagnóstico frio e calculista para meus pulmões que mais uma vez entraram em estado de greve, eu dividia espaço com outros tantos portadores de misérias tantas, fazendo uso de seu sacrossanto direito ao sistema de saúde tão maravilhoso no horário eleitoral, mas tão diferente na prática, na hora da injeção na bunda. Homens e mulheres, temporariamente irmãos forçados, já que as portas entreabertas destes hospitais públicos não nos permitem nem privacidade. Partilhamos intimidades constrangidos, uma hérnia aqui, uma icterícia acolá, adiante uma suspeita de zika, fazendo ecos como cantos gregorianos pelas enfermarias.

Eu pensava na linha limítrofe entre a classe D e o abaixo da linha de pobreza quando um socorrista, provavelmente mal pago, descarregou à minha frente uma maca de rodinhas um tanto enferrujada, com um corpo amorfo em cima. Um corpo desmaiado e bêbado, com exatamente o cheiro da boca de um tio alcoólatra que eu tinha, que pra minha desgraça adorava morder meus projetos de bochecha. O cheiro do bar, mas não dos bares cheios de amigos e risadas e discussões acaloradas sobre política, signos e economia, não; mas o cheiro do bar dos fracassados, das histórias que poderiam ter sido e não foram, dos filhos que poderiam ter nascido e não nasceram, dos amores de juventude que a essa hora poderiam estar comemorando bodas, mas morreram junto com a capacidade de se sentir amor por alguma coisa. O cheiro dos bares tristes, das pessoas tristes que os frequentam, que se debruçam lânguidas e desconjuntadas sobre as mesas de sinuca, sobre balcões bem sujos, julgando sensuais suas tatuagens malfeitas de borboletas ou com nomes de filhos que chegaram a nascer, mas são ilegíveis.

De repente, não mais que de repente, o homem bêbado arriou as calças, ainda deitado na maca. Nu, mijou na própria barriga. Na verdade, não assisti o desenrolar da cena: estava jogando Paciência no celular e pensando nas dívidas. Quando dei por mim, vi mulheres de todas as cores, de várias idades e muitos amores correndo como gazelas na savana pelos corredores do hospital.

Juro que pensei: o teto deste imóvel está caindo. Não havia nada mais viável pra pensar, dado o mofo, a falta de estrutura geral e provavelmente a licitação com materiais de primeira, mas execução com os de quinta. Depois olhei para o chão, alguém poderia ter desmaiado ou morrido. Ou vomitado, que a muitos assusta tanto quanto. Mas, não. Era um homem nu, com forte cheiro de fracasso, mijando na própria barriga.

Surpreendem essas cenas instintivas. As moças gritaram mesmo, com os pulmões saudáveis que eu não tenho. E correram, cada qual pra um lado, como se fugissem de uma represa que estourou. Foi triste ver medo e pânico no cotidiano banal, a miséria do bêbado e a das equilibristas. E é mais triste saber que sempre será assim, as mulheres todas sempre correrão das ameaças iminentes da desgraça no ar, porque até os homens meio mortos são assustadores quando se está vulnerável.

Nisso, o médico enfim abre a porta, e chama o próximo paciente, que era eu. No corredor de espera, apenas dois senhores franzinos, a maca com o corpo amorfo e mijado em cima. E eu, que desligo a Paciência no celular e entro na sala do médico. 
Diagnóstico frio, mais rápido que um miojo de galinha caipira. “É asma, né? Vai pra medicação”.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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