Gentil

sábado, 23 de maio de 2015

Gentil é um cara que faz jus ao nome. Puxa a cadeira, paga a conta, deixa a moça passar na frente, dá lugar aos cegos, aos velhos, às rebentas de rebentos ao colo. Já o vi devolvendo troco, troco alto até, ao cobrador do ônibus — que ficou com aquela cara de quem não entendeu nada até o fim da viagem. E Gentil lá, sentado, olhando através da janela do ônibus as gentilezas jamais efetivadas mundo afora. O rosto impassível de quem não faz mais que a obrigação.

Uma pena a gentileza não ser moda, nem mesmo no WhatsApp. Gentil é visto como bobo. Gentil compra chocolates para sua mulher: sabe de gosto preferido a tamanho e espessura. Os filhos de Gentil são os queridinhos das professoras e vivem cercados de guloseimas. Há de se deixar claro que Gentil teve uma formação normal, não estudou nas melhores escolas nem teve as melhores notas. Já roubou pirulitos quando criança e quebrou o telhado da vizinha com a bola de couro que ganhou com a figurinha premiada do álbum do Mamonas Assassinas. Mas nada disso impediu a sua essência. Nada impede que sejamos o que devemos ser. Nada, além de nós mesmos.

No caso do pirulito, ele foi descoberto. Era uma padaria de esquina onde hoje é o Condomínio Terra Nova. A balconista puxou suas orelhas, meteu a mão no bolsinho da mochila e tirou os quatro pirulitos da Turma da Mônica que ele tinha afanado. Descoberto e humilhado, figura quase londrina na chuva cinza que crescia, Gentil foi pra casa sem entender por que não merecia o doce. 

Gentil custou a entender o preço e o valor do trabalho. Talvez nunca teria entendido, não fosse a mãe pegar dengue. A mãe, dengosa, sozinha e com febre, um dia perdeu a hora da escola e teve que levar o filho com ela ao trabalho. Faxineira, faxinou, lavou, limpou, recolheu roupa, passou, dobrou, guardou. No fim do dia, exausta e esbaforida com medo de perder a hora do coletivo, se distraiu e quebrou um copo; levou bronca e foi descontada. Respondeu o patrão, que a xingou de volta sem cerimônias, entre imprestável e outros nomes feios. Não havia direitos naqueles tempos. A mãe perdeu a diária, perdeu o ônibus, perdeu o brilho. E estava chovendo. Só quem não tem dinheiro sabe o quanto uma chuva pode doer. Os dois, debaixo das goteiras, perderam as carnes e os yakults daquela semana. E Gentil só queria um pirulito.

Não se trata ninguém assim, não, pensou Gentil, gentilmente. Ainda mais trabalhador, ainda mais o que foi trabalhar doente. Cresceu com a imagem da mãe xingada pelo patrão. Era só um copo, sabe lá quanta coisa ela já não tinha feito de bom naquele mesmo dia. Então Gentil fez jus ao nome. Continuo vendo-o tratar a todos com a mesma cortesia, mesmo quando não é respeitado. Ele não grita com ninguém. Ontem, descíamos o morro em silêncio, quando Gentil atravessou a rua do nada. Era porque havia um homem bêbado desmaiado na calçada — e estava, veja só, chovendo Solimões inteiros. O bêbado se debateu, chutou Gentil, que com paciência tibetana arrastou-o até uma marquise. Sabe lá o que o homem fez pra ir parar lá. Cada um tem o pirulito que lhe cabe.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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