A chegada do guarda-roupa alterou toda a programação do dia, a casa virada de cabeça para baixo. Seis meses depois, ainda havia resquícios da mudança, caixas fechadas. Muitos livros, papéis, lembranças. A memória visual e tátil do meu apartamento no Rio ainda está presente. Livros que pensei estarem nas estantes ainda estavam nas caixas - a memória era de lá, não daqui. Quanto tempo uma pessoa leva para se desvincular de um lugar? Quanto tempo uma pessoa leva para se vincular a um lugar?
Di-versos
Esqueci meu nome
num dos versos
que te escrevi.
Deixei-o
como quem deixa
um feixe
de cabelo
ou uma folha
de outono
entre as páginas
de um livro:
como recordação.
Esqueci-me
para que
tu te recordes
de mim.
Ainda que te lembres
apenas quando tiveres
o livro em tuas mãos,
sei que meu nome
cairá
das páginas
e pousará
na memória.
Caros leitores,
Resolvi continuar o conto Sobre as flores, desenvolvê-lo melhor, trabalhar mais, talvez transformá-lo em novela, quem sabe romance. Por esse motivo, não o publicarei aqui na coluna, por enquanto. Para hoje, deixo este poema para vocês:=
o estado da rosa
Eu me despeço de tudo quanto vejo
No momento mesmo em que vejo
Porque ao ver, tudo desaparece.
Tudo o que é, quando vejo, deixa de ser,
Passa a ser outra coisa:
E aquilo que vi já se perdeu no meu olhar.
Maria adentrou o salão de festas, empurrando a porta com a caixa de flores, arfante, gritando. Cheguei. Ninguém a ouvira, todos concentrados em suas conversas. O salão não tinha flores, mas estava bonito. Perguntou ao garçom onde estava Ana, tremia, mas estava forte. Não fugira, estava ali, pronta pra guerra. Ninguém sabia onde ela estava, o diplomata e sua esposa estavam furiosos. Na cozinha, gritam que isso é inadmissível, querem o dinheiro de volta, não pagaram por isso. Com os olhos cheios d’água, Maria tenta consertar as coisas, assumir a responsabilidade.
Ana estava começando a ficar preocupada com a irmã. Não era possível tamanha demora, Maria não podia ser tão lerda assim. Alguma coisa acontecera. Faltava meia hora para a festa. Maria não atendia ao telefone. Depois fora de área. Ana começava a imaginar milhões de tragédias. Maria sendo estuprada, esquartejada, atropelada. Checava o celular a toda hora, esperando o telefonema da polícia, do hospital, do manicômio. Seu coração apertava dentro do peito, sensação de sufocamento. Ana não conseguia respirar.
Eus vão se perdendo
No vão dos caminhos.
Eu vejo o jardim
de folhas verdes.
Não vejo meus passos,
não sei que rastros
percorro ou sigo.
Lembro dos meus olhos
e sei o caminho.
Entre bosques e alamedas
me persigo.
Eu nada diz.
Eu tudo indaga.
O eco das minhas angústias
me persegue.
Fujo.
Corro por entre as árvores.
Olho para trás
e vejo meus olhos
que nada dizem
(mas eu já nada indaga).
Maria sentia o sol refletido em sua pele branca. Na floricultura, tentava definir o cheiro de cada flor, respirando fundo o perfume de cada uma. Não sentia o tempo passar. Por um momento, esqueceu por que estava ali e que flores deveria comprar. Ana era sempre muito exigente e organizada, havia feito uma lista das flores que deveriam ser compradas e especificações quanto à sua qualidade. Os lírios não deveriam ser nem jovens nem maduros demais. Essa regra valia para todas as flores, na verdade, mas Ana tomava o cuidado de especificar esse fato para cada uma.
O corpo vivo,
Cheio de flor.
Planta de caule espesso,
Me viro do avesso
E desfaço essa dor.
A seiva bruta
Escorre das pernas:
Raízes abertas
A te envolver.
As folhas soltas,
Caindo dos galhos
O fruto maduro
Pingente do meu ser.
Ao chegar a casa, após comprar flores (seja uma mísera rosa ou um complexo arranjo), vá à cozinha. Encha um vaso com água até a metade e peque uma faca bem afiada. Apoie as flores na bancada da pia e corte seus talos na direção diagonal. Dessa forma, as flores se conservarão vivas por mais tempo. Além disso, é preciso trocar a água do vaso de dois em dois dias. Ao fazê-lo, um cheiro desagradável virá da água antiga. É que as flores estão vivas e viver é morrer, apodrecer diariamente.
O poema se inscreve
Na página em branco.
As palavras incrustando-se
Nas palmas:
O sangue.
A cigana
Da rosa vermelha
Lava as minhas mãos:
As lágrimas caem
Dos dedos.
E os segredos
Descalços
Desenham
No asfalto
A revelação:
A água é a única força
Capaz de apagar o fogo.