Colunas
Sobre as flores
Ao chegar a casa, após comprar flores (seja uma mísera rosa ou um complexo arranjo), vá à cozinha. Encha um vaso com água até a metade e peque uma faca bem afiada. Apoie as flores na bancada da pia e corte seus talos na direção diagonal. Dessa forma, as flores se conservarão vivas por mais tempo. Além disso, é preciso trocar a água do vaso de dois em dois dias. Ao fazê-lo, um cheiro desagradável virá da água antiga. É que as flores estão vivas e viver é morrer, apodrecer diariamente.
Ana decidiu que não compraria as flores ela mesma. Precisava aprender a delegar as tarefas e não absorver a responsabilidade do mundo sobre seus ombros. Pediu, então, que Maria as comprasse, o que a irmã aceitou prontamente.
Era uma manhã agradável, nem quente, nem fria, nem ensolarada, nem nublada. Maria levantara especialmente alegre, como se soubesse - simplesmente soubesse - que algo de extraordinário lhe aconteceria naquele dia do mês de maio.
Quando Ana lhe pedira, com seu modo autoritário habitual, que comprasse as flores, Maria não pensou duas vezes. Sentiu que o extraordinário já começava a acontecer, que a ida ao florista era parte do plano divino que lhe traria a plena felicidade. Subiu correndo ao quarto, mal contendo a alegria que parecia explodir em seu peito. Abriu os armários e pensou calmamente na roupa que vestiria naquela manhã.
Optou pelo vestido branco, que traria o ar campestre e a sensação de liberdade que pulsava em suas veias.
Ao descer as escadas, deparou-se com Ana e seu olhar reprovador:
- Precisava se arrumar tanto?
- Nunca se sabe em quem você pode esbarrar no caminho, nem mesmo indo à padaria...
- O príncipe encantado não compra flores, Maria, ele manda alguém comprar.
- Vai saber.
O cinismo de Ana atrocidava Maria e o otimismo de Maria irritava Ana, que não se conformava com sua ingenuidade. Essa dinâmica regia o tom dos dias.
Maria sempre vira um certo romantismo no ato de comprar flores. As flores devem espelhar a essência de uma mulher e nem todas as mulheres são rosas vermelhas, embora exista algo de universal nas rosas. Ela tentava se colocar na pele de um homem que escolhesse flores para ela. E, nessa procura, se apaixonava um pouco por si mesma, esboçando feições sonhadoras. Era a mesma sensação que tinha quando se olhava no espelho, em completa solidão. Via em seu corpo nu tamanha ternura, tocava-se com tanta delicadeza, que sentia vontade de chorar por não poder guardar-se para sempre assim, branca e inteira. Mas havia também os momentos em que lhe invadia uma repulsa por si mesma, quando seu corpo parecia se deformar, quando essa doçura toda azedava. Aí mergulhava na cama em profundo cansaço, esgotamento do mundo e de suas demandas. No dia seguinte, o sol impunha que levantasse: de pé, o medo da queda era maior que o desejo.
Ana sabia que as indisposições de Maria eram apenas desculpas para não fazer nada. Será que ela não pensava que Ana também poderia se sentir indisposta? Mas quem daria conta dos afazeres da casa, do trabalho a ser feito? Afinal de contas, alguém tinha que trabalhar. Aceitar o fardo do sustento da vida não é algo fácil para ninguém, mas Ana aprendera desde cedo que estava sozinha e que só poderia contar consigo mesma. E ela dava conta de si mesma e da irmã, numa postura heroica de sobrevivência. Maria jamais poderia entender e isso em parte era sua culpa, por sempre tentar poupar a irmã. Mas ela era mais frágil mesmo, não aguentaria o tranco. Era fraca. O que Ana não suportava era a ingratidão, a falta de reconhecimento. Maria parecia acreditar que as coisas simplesmente aconteciam, por um passe de mágica. Ana não acreditava em nada há tanto tempo. Se Deus existia devia ser um grande filho da puta. Mas logo afastava o pensamento - vai que Deus existe mesmo. Ana era mais supersticiosa do que gostava de aparentar.
As flores eram para a festa de um diplomata. Ana era dona de um serviço de decoração para festas de casamento, aniversário, bodas, coquetéis, etc. E Maria estava demorando demais. Ela sabia que não podia confiar em Maria, mas insistia no erro. Conseguia ver toda a cena, Maria chegando com os arranjos, toda destrambelhada, as flores amassadas. O salão repleto de flores amassadas. As pessoas comentando entre si quem tinha sido responsável por aquele desastre. A reputação de Ana indo embora pelo ralo. A falta de dinheiro, os alugueis atrasados. O despejo. O desastre. Devia ter ido ela mesma comprar as flores.
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