Sobre as flores

domingo, 09 de agosto de 2015

Maria sentia o sol refletido em sua pele branca. Na floricultura, tentava definir o cheiro de cada flor, respirando fundo o perfume de cada uma. Não sentia o tempo passar. Por um momento, esqueceu por que estava ali e que flores deveria comprar. Ana era sempre muito exigente e organizada, havia feito uma lista das flores que deveriam ser compradas e especificações quanto à sua qualidade. Os lírios não deveriam ser nem jovens nem maduros demais. Essa regra valia para todas as flores, na verdade, mas Ana tomava o cuidado de especificar esse fato para cada uma. Maria pensava no quanto essas listas e especificações tiravam todo o prazer da escolha. Intuitiva por natureza, comprava aquelas que mais lhe agradassem, que parecessem certas para aquele dia, aquele sol, aquele clima. Por sorte, acabava escolhendo as mesmas flores da lista, embora nunca recorresse a ela, motivo pelo qual seu pequeno delito nunca fora notado. Por isso, naquela manhã, nem se dera ao trabalho de levar o papel consigo. Ao sair da casa, jogara-o na primeira lixeira que encontrara pelo caminho. 

Maria perdera a noção da hora. Ao pagar a conta ao florista, avistou o relógio atrás do balcão e levou um susto. Saiu correndo pela rua, em direção ao ponto do ônibus. Depois de esperar meia hora com a caixa de flores aos seus pés, percebeu que não havia levado dinheiro para a passagem. Saíra apenas com a quantia que Ana lhe dera para as flores. Resignada, Maria desceu e se pôs a andar o mais rápido possível, pois com a caixa não era possível de fato correr. Ela sabia que as flores não durariam muito tempo fora d’água, ainda mais naquele calor, e, a pé, estava a pelo menos duas horas do salão de festas. Maria começou a entrar em pânico, a suar frio, pensando na reação que Ana teria ao ver as flores naquele estado e àquela hora, faltando tão pouco para a festa. Então começou a pensar no que poderia inventar.

Ana contava cada minuto, se Maria havia saído às 10h, teria de estar de volta no máximo meio-dia, contando com o trânsito. Se ela chegasse 12h10, Ana saberia que parara para comer ou outra coisa qualquer e perguntaria o que era mais importante do que o seu trabalho? O que era mais importante que entregar as flores na hora certa para que tudo saísse perfeito? O que era mais importante que a nossa sobrevivência? Maria tremia da cabeça aos pés, suava, andando pela Rua das Laranjeiras, tentando encontrar alguma razão para tamanha desfeita. O que ela poderia dizer? A verdade não era uma possibilidade. Não poderia dizer que se atrasara porque perdera tempo demais cheirando flores e depois não pudera pegar o ônibus porque esquecera a carteira. Songa monga, Ana diria. Maria lerdeza. Não. Ela não poderia ouvir isso mais uma vez. Com a vista escurecendo, decide sentar na calçada para não desmaiar. Tenta estabelecer um plano. Criar uma história verossímil.

Ela se atrasara porque a floricultura do Largo do Machado não tinha as flores da lista ou as que tinham não estavam do modo como Ana havia especificado. Então tivera que ir andando até a Glória, mas lá também não havia. Andou em direção à Lapa e foi assaltada, levaram todo o seu dinheiro. Mas aí como comprara as flores, Ana perguntaria. Maria diria que deixara pendurado na floricultura da Lapa. Qual delas? Meu Deus, como isso é exaustivo...Maria sequer sabia onde havia floricultura na Lapa. Em que rua? Pensa! Tentava mapear toda a região e nada. Seria descoberta. Pega na mentira como uma criança que quebra um vaso bonito da casa e tenta jogar a culpa no amigo imaginário. Não havia outra maneira. Ela teria que fugir.

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