Escrevivendo

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

30/10/2014

“porque nenhuma indica

essa ausência tão ávida

como  a imagem de uma faca

que só tivesse lâmina”

(João Cabral de Melo Neto)

 

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29/10/2014

Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver, só mesmo ficando quietinha embaixo dos lençóis.

 

O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que até eu de vez em quando duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que "de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.

 

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22/10/2014

Pegou o Fiat 82 e se mandou, ele que fosse de ônibus. Ou a pé. Tomara que venha a pé e seja atropelado.

A moça brigou com o namorado nas furnas do Catete, onde tinham ido tomar caldo de cana e ver a cachoeira do Véu das Noivas que, por sinal, estava seca. Contou-lhe muitos desaforos, chamou-o de todos os nomes feios de que pode se lembrar na hora. Namoravam há mais de três anos, namoro moderno desde o primeiro dia, posto que começou numa inocente festa de batizado e na mesma noite se consumou num motel da estrada Friburgo-Teresópolis. 

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15/10/2014

Não chego a desejar que em nossa cidade apareçam mulas sem cabeça, lobisomens ou fantasmas da ópera

Quem é vivo sempre aparece, diz o ditado. E não falta quem acredite que quem é morto também aparece. De fato, ninguém some completamente. Para alguns em espírito, para outros em carne e osso, para a maioria de nós em forma de saudade e pranto, todos os que se foram voltam para nos visitar de vez em quando. 

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14/09/2014

“Deixai vir a mim as criancinhas”, disse Jesus e, portanto, tudo está dito. É o próprio Senhor que nos mostra as crianças como símbolo do que pode haver de melhor no ser humano, tanto que delas “é o Reino dos Céus”. Delas ou de quem, em qualquer idade, com elas se pareça em seu coração.

A nós, adultos, cabe a difícil tarefa de ensinar os pequeninos “o caminho em que deve andar” para que não se desviem dele “ainda quando velho”.

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29/08/2014

No livro “Campo Geral”, de Guimarães Rosa, Miguilim, menino que vive no lugar chamado Mutum, tem um problema de vista. Mas, como nunca viu o mundo de outra forma, acredita que tudo é opaco, sem nitidez, sombreado. Até que por lá passa um viajante que faz Miguilim experimentar um par de óculos. Quando o menino coloca os óculos, espanta-se ao ver, pela primeira vez, o mundo limpo, nítido, claro. O Mutum era bonito, e ele não sabia.

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