“porque nenhuma indica
essa ausência tão ávida
como a imagem de uma faca
que só tivesse lâmina”
(João Cabral de Melo Neto)
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
“porque nenhuma indica
essa ausência tão ávida
como a imagem de uma faca
que só tivesse lâmina”
(João Cabral de Melo Neto)
Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver, só mesmo ficando quietinha embaixo dos lençóis.
O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que até eu de vez em quando duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que "de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.
Pegou o Fiat 82 e se mandou, ele que fosse de ônibus. Ou a pé. Tomara que venha a pé e seja atropelado.
A moça brigou com o namorado nas furnas do Catete, onde tinham ido tomar caldo de cana e ver a cachoeira do Véu das Noivas que, por sinal, estava seca. Contou-lhe muitos desaforos, chamou-o de todos os nomes feios de que pode se lembrar na hora. Namoravam há mais de três anos, namoro moderno desde o primeiro dia, posto que começou numa inocente festa de batizado e na mesma noite se consumou num motel da estrada Friburgo-Teresópolis.
Não chego a desejar que em nossa cidade apareçam mulas sem cabeça, lobisomens ou fantasmas da ópera
Quem é vivo sempre aparece, diz o ditado. E não falta quem acredite que quem é morto também aparece. De fato, ninguém some completamente. Para alguns em espírito, para outros em carne e osso, para a maioria de nós em forma de saudade e pranto, todos os que se foram voltam para nos visitar de vez em quando.
“Deixai vir a mim as criancinhas”, disse Jesus e, portanto, tudo está dito. É o próprio Senhor que nos mostra as crianças como símbolo do que pode haver de melhor no ser humano, tanto que delas “é o Reino dos Céus”. Delas ou de quem, em qualquer idade, com elas se pareça em seu coração.
A nós, adultos, cabe a difícil tarefa de ensinar os pequeninos “o caminho em que deve andar” para que não se desviem dele “ainda quando velho”.
No livro “Campo Geral”, de Guimarães Rosa, Miguilim, menino que vive no lugar chamado Mutum, tem um problema de vista. Mas, como nunca viu o mundo de outra forma, acredita que tudo é opaco, sem nitidez, sombreado. Até que por lá passa um viajante que faz Miguilim experimentar um par de óculos. Quando o menino coloca os óculos, espanta-se ao ver, pela primeira vez, o mundo limpo, nítido, claro. O Mutum era bonito, e ele não sabia.