Uma Faca Só Lâmina - A Obra de Graciliano Ramos

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

“porque nenhuma indica

essa ausência tão ávida

como  a imagem de uma faca

que só tivesse lâmina”

(João Cabral de Melo Neto)

 

 SEMPRE QUE PENSO na obra de Graciliano Ramos, me lembro desses versos de João Cabral. Talvez isso não faça nenhum sentido para outros leitores. Ou talvez faça, porque quem leu GR sabe que uma das marcas, senão a principal, do que ele escreveu é a absoluta economia de palavras e de sentimentos, como uma faca reduzida ao que lhe é essencial. E, afinal, essas associações não têm mesmo lógica, nascem na cabeça da gente sem dar explicações. 

DE QUAQUER FORMA, abro com eles algumas poucas considerações sobre esse romancista que é dos nomes mais importantes da nossa literatura. Presença marcante no romance brasileiro pelo seu estilo singular, personalíssimo, por sua capacidade de escolher as palavras e os fatos, de ordená-las e ordená-los e, sem artifícios, sem concessões sentimentalóides, de ir ao âmago do drama dos seus personagens. Gr abomina o lugar-comum, o clichê, a solução fácil no nível da escritura ou na solução dos sofrimentos das criaturas que habitam sua obra.

A ESCRITA DE GR é quase bruta, vai ao que é essencial, ao imediato. Na sua obra nada é descartável, não há paisagens, não há devaneios: há somente o homem embrutecido. Embrutecido seja pela natureza adversa, seja pelo estranhamento do sertanejo que se perde no mundo urbano, seja, afinal, porque a vida lhes é sempre pesada e amarga. Paixões, ódios, animalidades são traços dos personagens gracilianos. E talvez a característica mais constante de todos eles seja o desejo de posse, posse da terra e das pessoas, tudo transformado em coisa pela ambição, pelo ciúme, pela busca de poder ou o sentimento de fracasso.

MAS GR NÃO SERIA o romancista que é se o povo que ele criou fosse um bando de estereótipos. Veja-se um de suas principais criaturas, Paulo Honório, do livro “São Bernardo”. Vindo da pobreza e do sofrimento, Paulo Honório vale-se de todos os meios, honrados e desonrados, mansos ou violentos, para se apossar da fazenda que dá título ao livro. Cruel, insensível, ambicioso ao extremo, se em algum momento se humaniza é quando conhece Madalena, conquista-a quase à força, e finalmente se casa com ela, para depois destruí-la e, com isso, destruir-se.

MAS PAULO HONÓRIO não é assim tão simples. Seu criador o faz dotado de uma rica, ainda que deformada, vida psicológica. Ninguém gostaria de conviver com Paulo Honório, o que não nos impede de, no fim do romance, sentir por ele mais pena do que rancor. Grande estilista, escritor consciente e obcecado pela exatidão e veracidade de sua criação, GR põe diante do leitor um ser humano complexo, talvez desprezível, mas nem por isso menos humano.

MAS VOLTEMOS AO ESTILO DE GR. Se fosse necessário classificar esse estilo com uma só palavra, “seco” seria a melhor escolha. Porque nele nada vai além do estritamente necessário. É sóbrio, contido, muito distante do que o senso comum julga ser o belo nas artes.   A beleza em GR está justamente em erguer um mundo de seres abatidos, perseguidos, fracassados, cheios de ressentimentos e, ainda assim, fazer-nos segui-los em seus descaminhos, para nos darmos conta de que o que eles mais merecem é misericórdia. Porque a aspereza do escritor parece esconder um homem sensível, sofrido e, por isso mesmo, identificado com os sofredores.

QUEM LÊ “VIDAS SECAS”, possivelmente o romance mais ameno de GR, segue a trilha daquela família tangida pelo clima do sertão, e mais ainda, pela secura dos latifundiários, a dureza das pequenas autoridades, a vileza dos exploradores dos pobres e desvalidos.  Mas não se encontram ao longo do livro a demagogia fácil, as reduções simplistas comuns em outras obras que abordam tema semelhante. Não sem razão, a cadela Baleia é a figura mais humana no meio daquelas figuras quase bichos. O mundo de GR não é bonito, é verdadeiro. Ou, pelo menos, é parte de uma verdade maior: a existência desses “bichinhos cá na terra tão pequenos”, como Camões nos definiu em “Os Lusíadas”.

 “ANGÚSTIA” É, PARA MUITOS CRÍTICOS, o mais bem construído romance Graciliano. De um fiapo de enredo, transborda a tumultuada vida interior de Luís da Silva, a desordem de seus pensamentos, sentimentos e emoções. O crescer incessante da intenção obsessiva de matar Julião Tavares, que lhe roubara a noiva, Marina (se é que se pode chamar de plano o desvario de quem perde o sentido de tempo e de lugar, para fixar-se numa ideia única e totalizante).

 NÓS ATÉ PODEMOS CONHECER alguém que, remoído pelo seu próprio fracasso, descobre outra pessoa a quem responsabilizar pelo seu sofrimento. Mas nós conhecemos por fora, nas aparências e nos enganos. Lendo “Angústia”, no entanto, podemos acompanhar “por dentro” a deteriorização moral e psicológica de um ser humano e, assim, compreendê-lo, sem com isso lhe querer bem ou aprová-lo.

É ESSA CAPACIDADE de nos fazer viver muitas vidas, sem nunca tê-las vivido, que faz a grandeza da literatura. Grandeza na qual Graciliano Ramos foi mestre incontestável. 

FALTOU FALAR sobre o engraçadíssimo “Historias de Alexandre”, sobre os livros infantis, sobre o romance “Caetés” e os contos de GR. Fica o desafio ao leitor de ir ao encontro dessas obras que, se não tão valiosas quanto às anteriormente citadas, ainda assim merecem ser lidas, como tudo que GR escreveu, inclusive o famoso relatório que, quando prefeito e Palmeira dos Índios, enviou ao governador do Estado de Alagoas.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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