Grandes Dúvidas

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver, só mesmo ficando quietinha embaixo dos lençóis.


 

O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que até eu de vez em quando duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que "de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.

 

Por exemplo. No Japão, número de pessoas centenárias é uma coisa verdadeiramente japonesa. As mulheres da Terra do Sol Nascente são os seres humanos mais longevos do mundo, batem facilmente nos noventa e nos noventa ainda batem nos filhos, nos netos e no marido, se ele ainda estiver vivo e se meter a besta.

 

Até algum tempo, quando alguém fazia cem anos, o governo lhe mandava uma taça de prata maior que um copo. Mas de repente disparou a crescer o número de velhinhos que se recusava a morrer antes de completar um século. A continuar assim, nem a poderosa economia nipônica aguentava.  Resultado: atualmente o governo oferece uma tacinha do tamanho de um anel, e olhe lá!

 

Pois bem, bateu a dúvida. Era ancião demais, não havia prata que desse. Os gastos com as ricas pensões era uma enormidade. As autoridades resolveram então investigar a história. Numa das casas visitadas, os fiscais encontraram uma múmia deitadinha, coberta por um lençol. Apertados pela polícia, os herdeiros da múmia, que todo mês embolsavam o pagamento, alegaram que não sabiam que o digno parente já havia morrido. "Ele sempre foi assim quietinho”, alegaram com a cara mais sincera e sentida.

 

Quanto a mim, a maior dúvida é na hora de votar. Vejo a propagando eleitoral na TV, ouço o falatório nas rádios, troco abraços com candidatos e recolho educadamente os santinhos que me oferecem. E sempre fico em dúvida. Mas não pela razão mesquinha de achar que os candidatos não são bons. Antes fosse! Minha dificuldade é escolher entre tantos homens e mulheres que se dispõem a ir para o sacrifício pelo bem do povo.

 

Nenhum deles se interessa por dinheiro, poder ou prestígio. Ninguém sonha nomear parentes e amigos. Horroriza-os a simples ideia de que obras possam ser superfaturadas, que verbas possam ser desviadas, que acordos espúrios possam ser feitos. O que todos ardentemente desejam é doar-se, dar a vida se preciso for, para que o povo, que graças a eles já vive tão bem, passe a viver ainda melhor.

 

Apesar disso, considero legítima a preocupação do governo em saber se ainda existo, e tanto que fui lá para ser vivamente fichado e fotografado. Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver, só mesmo ficando quietinha embaixo dos lençóis. Tendo provado que eu era eu e ainda respirava, voltei para a rua me sentindo alegre e orgulhoso. Orgulhoso por ter cumprido o dever cívico, alegre porque — conspiração da natureza — tudo em volta estava cheio de luz e cor.

De repente, a chateação de atender a uma chamada burocrática havia se convertido na agradável sensação de estar vivo, em paz com tudo e todos, aí incluindo o governo e seus agentes. Longa é a arte, curta é a vida, já dizia nosso amigo Sêneca. Aliás, esse tal de Sêneca foi professor e conselheiro de Nero, aquele de Roma. Ainda hoje resta dúvida sobre qual a responsabilidade de Sêneca nas malvadezas de seu discípulo. Talvez muita, mas não se pode esquecer que o outro conselheiro de Nero chamava-se Burro ou, por extenso, Sexto Afrânio Burro. Um nome desses explica muita coisa.

E lá fui eu, não menos burro, porém mais satisfeito, porque, feitas as contas, resulta que viver é uma experiência boa, e a gente às vezes a desperdiça com pequenos rancores, infundados preconceitos, tolas fantasias. Não vale a pena gastar a curta vida com essas miudezas. Alegremo-nos por estar vivos. Porque dia chegará em que o governo mandará perguntar por nós, e ficará sabendo que há muito nos tornamos uma múmia, coberta por um curto lençol de terra.

TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.