Colunas
Personagens, semelhanças e Pequeno Príncipe
Hoje os meus personagens resolveram me visitar e chegaram sem avisar. Acordei rodeada por eles; falantes, brilhantes e amorosos. Já os mencionei ao longo das colunas, mas falar especialmente deles, nunca aconteceu. Deveria ter acontecido, entretanto houve um certo acanhamento. Talvez, tenha sentido alguma timidez em mostrá-los ou um certo medo de conhecê-los melhor, uma vez que ao me dedicar a eles, fora do contexto da história, possa desvelá-los com maior nitidez e descobrir que trazem um pouco da pessoa que sou, da qual não lá goste muito de ser. Tímidos, tenho certeza de que não são, pois se assim o fossem, não sairiam das minhas ideias para as páginas dos meus livros.
Certa vez, quando estava fazendo minha formação de escritora, uma amiga de oficina, a Fernandinha, apresentou ao grupo uma questão importante: a verossimilhança. Foi uma questão que percorreu várias oficinas\aula, leituras a respeito do processo criativo de escrita. Chegou até a me acompanhar durante as madrugadas, quando acordava, entre um sonho e outro. A partir de então, o conceito de nexo passou a ser um referencial significativo na construção das histórias por mim criadas; o princípio da coerência, portanto, tornou-se uma linha mestra. No livro, Aventureiros da Serra, publicado pela RH Livros, em 2012, a cada nova cena, eu retornava à primeira página e reorganizava toda a história, cuidando do desencadeamento do texto.
O texto literário, mesmo situado nas trilhas da ficção, tem que ser tão verdadeiro como se estivesse existindo no âmbito da realidade concreta. As narrativas e as descrições, que envolvem os personagens e ambientes, têm que ser admissíveis. A realidade obedece às relações de causa e efeito, que possuem uma lógica intrínseca. Mesmo no âmbito da loucura, as relações podem ser compreendidas. O escritor não pode deixar de estudar Freud, Lacan e Piaget, os mestres da mente humana, para delinear seus personagens.
São os personagens, exclusivamente eles, que fazem a história acontecer. Um pé de meia e um pé de vento podem contar uma sensível relação de amizade, a partir da luta entre a força do vento e a fragilidade de um pé de meia solto no ar, conforme a história criada pela minha amiga escritora Flávia Côrtes.
Para mim, os personagens são como entidades, vindas, ainda não sei de onde, que nos surgem e nos fazem escrever uma história. Há quem diga que os personagens emergem da pessoa do escritor que os criam. Há quem diga que eles vêm do espaço ou de outra dimensão. Mas se surgem do inconsciente, que seja individual ou coletivo, ou do além Planeta Terra, eles são, para o escritor, tão reais, quanto uma pessoa íntima, que vive ao lado dele. Que o sustenta em sua dor, que o ampara em seus vazios, que o alegra em sua efêmera existência, que explicam seu espanto diante da vida.
O escritor tem um tempo limitado de vida, mas os personagens. Ah, os personagens podem ser eternos, como João e Maria. Como o Pequeno Príncipe. Talvez por isso, nós, os escritores, os criamos. Compulsivamente.
Desde sempre, tive contato com personagens através dos livros, teatro e filmes. Entretanto, o Pequeno Príncipe me fez percebê-los com os olhos e sentimentos de um escritor, quero dizer, de um criador. Por isso, li toda a obra de Saint-Exupéry. Li e reli o O Pequeno Príncipe, bem como todos os estudos que o cercaram. Esta experiência de leitura me influencia até hoje. Reconheço e afirmo que em cada palavra minha, há um Pequeno Príncipe contido.
Como nós, viventes, construímos nossa história, somos os protagonistas. Somos personagens.
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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