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Mas precisa ser no grito?
Pessoas que nos querem converter à força
Eu não tenho nada contra Jesus, muitíssimo pelo contrário. Ele é que, com razão, deve ter muita coisa contra mim. No entanto, sendo quem é, acaba esquecendo. Desde criancinha tento andar ao lado dele, o que, convenhamos, não é nada fácil. Mas eu compreendo que Jesus evite as más companhias e não levo a mal se ele aperta o passo quando eu me aproximo.
Às vezes sinto que estou a ponto de alcançá-lo, às vezes penso em desistir da corrida, tão distante o vejo, tão distante que quase o perco de vista. Mas o que sucede sempre é que em alguma esquina deste mundo e desta vida acabamos por nos encontrar, ainda que só de passagem. Parece que estou num trem de alta velocidade e, quando olho pela janela, ele está na plataforma. Logo o trem dispara à frente, e já não o vejo. Na próxima estação, quem sabe, ele embarque no mesmo vagão em que estou e talvez até se sente ao meu lado?
Assim é que ando à procura de Jesus, sem nunca o encontrar completamente e sem nunca deixar que completamente ele me escape. E eis que o faço de maneira discreta, em geral de modo silencioso. Por isso me espanta que haja quem tente atraí-lo aos gritos. Pessoas que, munidas de um microfone e uma caixa de som, soltam a voz em lugares públicos: praças, rodoviárias, calçadas. Pessoas que nos querem converter à força. Santas intenções, muitas irritações, poucas conversões!
Eu sempre achei que Jesus falava baixo e somente para quem o procurasse. Nunca ouvi dizer que ele andasse puxando galileus ou samaritanos pela manga, obrigando-os a ouvi-lo. Verdade que ele recomendou (Mt 10,27) que anunciássemos pelos telhados o que nos fosse falado ao pé do ouvido. Mas não está escrito que era para fazer isso aos berros, como se possuídos não por Jesus, mas pelo... deixemos pra lá.
Não recebo mal os religiosos que batem à minha porta. Não lhes bato a porta na cara, antes os atendo com a possível cordialidade. Mas confesso que não tenho muita paciência com aqueles que falam como se Deus tivesse assinado um contrato de exclusividade com eles e só a eles tivesse revelado a verdade. Acho que infelizmente partem decepcionados comigo, porque, depois de tantas explicações e ensinamentos, teimo em não mudar de lado, embora respeitando o lado deles.
Leio com atenção e boa vontade os prospectos, livros e revistas com que me presenteiam e quase sempre acho que foi uma leitura útil. A gente aprende muito lendo aquilo com que concorda, e mais ainda com aquilo de que discorda.
Mas imagens do céu e do inferno que me cheguem via megafones não contam com minha simpatia. Acho ora trágicos, ora engraçados, os que nos prometem a imediata salvação ou a perdição eterna como se narrassem um jogo de futebol. Eles me fazem lembrar daquela piada, velha como a Sé de Braga (que data do ano de 1070), com a qual vou encerrando essa conversa, antes que ela fique por demais sisuda e cansativa.
O sujeito está passando em frente a uma igreja e ouve lá dentro a maior gritaria. Pergunta a um dos fiéis o que está acontecendo.
— Jesus está operando.
— Mas ele não usa anestesia, não?
Robério Canto é professor, escritor e membro da Academia Friburguense de Letras (AFL). Escreve neste espaço, quinzenalmente, às quartas-feiras.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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