Quem escreve memórias descobre seus dragões

segunda-feira, 01 de julho de 2019

Não existe terapia mais eficiente do que escrever memórias. Não tenho dúvidas de que escrevê-las é o mais complexo dos desafios. Até inspirada em Saint-Exupéry, considero que é mais fácil contar a história de outros ou inventá-las do que contarmos a nossa própria porque as lembranças envolvem observações, avaliações críticas e argumentações. As boas lembranças não são parques de diversões; pelo contrário, são belas e tristes, interessantes e trágicas, inusitadamente corriqueiras e severamente trágicas. Revelam nossa humanidade tão imperfeita quanto os traços dos quadros de Jean Miró. Ah, as fraquezas fazem parte do nosso destino que vamos construindo todos os dias; dão-lhes contornos. Se fossemos autores de experiências perfeitas, a vida não teria a magnitude da pintura de Diego Velásquez.

Meu amigo, Alfredo Henrique, médico socorrista, depois de se aposentar da rudeza dos prontos-socorros, decidiu escrever como forma de visitar suas vivências, muitas delas de uma crueldade infinita. Hoje, seu semblante tem o tom do renascimento. Rever o passado pressupõe descobrir significações, enquanto esforço para não morrer em vida. Minha amiga Lenah precisou recontar sua história para continuar a viver. Foi tão difícil passar a limpo seu passado que adoeceu, teve câncer, enquanto reação corporal às dores que sentiu na infância. Quando seu livro, A Voz do Tempo, foi lançado, seus olhos verdes brilharam mais. Lenah está linda! Como é bom admirar seu engajamento na vida e vê-la seguir seu caminho com simplicidade e tranquilidade.

O escrever nos cura mais das unhas encravadas do que o falar, até porque temos que corrigir e corrigir o que escrevemos. A memória, enquanto estilo literário, é um registro histórico que nos faz rever diversas vezes situações que vivemos, buscar palavras corretas descrevê-las e analisá-las, redefinir pessoas com quem convivemos, recontar fatos em que atuamos. Escrevendo nos tornamos personagens e ficamos distanciados dos tantos acontecimentos que nos fizeram ser o que somos. Assim, conseguimos fazer interpretações diferentes das que fizemos na época em que éramos os atores das cenas. Ao reescrever nossa história compreendemos melhor o modo como atuamos na vida. E quando chegamos à idade adulta, podemos concluir que não somos vítimas do destino. Ah, tornamo-nos protagonistas, diretores e não nos sentamos nos camarotes da plateia. Apesar de sermos consequência do que nos aconteceu, temos inteligência suficiente para usarmos o livre arbítrio a que temos direito. 

A cada palavra que escrevemos vamos desenhando nossos dragões, enquanto força para enfrentar a finitude com sabedoria e aprendendo a cantar serenata nas sacadas de quem queremos beijar. 

 

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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