Colunas
A mulher e o pombo
Estou lendo thekhov e maravilhada com a profundeza com que ele aborda as circunstâncias mais comuns. Estamos a costumados a perceber o que diariamente nos cerca com o piloto automático ligado, um olhar rápido e pragmático que faz com que percamos significativos detalhes que tornam um fato, não mais do que corriqueiro, em um acontecimento preponderante. Tão inesquecível, capaz de fazer o pensamento realizar reflexões por um longo tempo, dando apetitoso alimento à alma. Decidi, então, aprimorar os meus modos de perceber, pensar e sentir. Ah, o quotidiano não é uma mesmice. Porém, assim o será caso nosso olhar se amesquinhe.
Hoje, um dia de sábado, em pleno acalorado verão do Rio de Janeiro, saindo, de manhã, logo depois de virar a esquina, estavam, lado a lado, uma mulher e um pombo, ambos velhos, muito velhos. O pombo estava nos pés de um tronco de árvore, piando baixinho, como se chamasse um outro para fazer-lhe companhia. A mulher, a poucos centímetros, andava curvada em lentos passos, sendo amparada por um andador. O pombo e a mulher não notaram um ao outro. Entretanto, eles tinham em comum a dignidade do findar, uma vez que lutavam arduamente para viver mais um dia de suas vidas. Ambos não estavam em busca do relaxamento do corpo velho e trôpego, pelo contrário, retiravam, de todos os modos, das células, dos músculos e dos pés, um resto de energia, ainda disponível.
Como nos é desafiador constatar que podemos prosseguir e ir além enquanto há gotas de vida em nossas células. Tão solitários e nada solidários, a velha e o pombo, a mim mostravam que aquele dia valia a pena ser vivido, apesar do calor intenso. Apesar da mulher apenas conseguir dar um passo no tempo em que, em idades anteriores, poderia dar três ou mais. Apesar do pombo não ter mais como dominar o espaço com o seu voo. Apesar do envelhecimento da mulher e do pombo, cidade estava vivíssima, abraçando mais um dia de verão, acolhendo crianças nascendo, noticiando os mais variados fatos urbanos. E os dois ali, o pombo e a mulher, ainda dignamente vivos, decidindo, por livre arbítrio, registrar em suas histórias, a vitória de uma vida. Quantos não puderam assumir tal dignidade por terem antes findado? Quantos!? O envelhecimento não é uma tragédia, nem o velho deva receber nossas tristes considerações. Eles são vendedores, os verdadeiros heróis da humanidade.
Outra questão que os dois me suscitaram foi a solidão com que vivenciavam aquele momento guerreiro. Por mais cercados que possamos ser de família, amigos, vizinhos e conhecidos, esta luta interna, em que determinamos a superação de impedimentos, é essencialmente solitária. E tem de ser. Apenas porque é uma luta exclusivamente nossa. Jamais do outro, nem do Grande Outro (a coletividade), como dizia Lacan. Se não for nossa, não será de ninguém.
Mais uma vez constato: a literatura nos salva, e as obras clássicas, as que não desapareceram com o tempo, são e serão completamente atuais.
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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