Colunas
Sonhos e nuances
Estou acabando de chegar do teatro, abro o computador e começo a escrever minha coluna semanal, carregada pelas emoções que o musical O Homem De La Mancha, com adaptação e direção de Miguel Falabella, me causou. Estou carregada pela beleza do espetáculo, pela profundidade do texto, pela capacidade de expressão dos atores.
Dom Quixote, por várias vezes, me tocou. Para ser sincera, esta obra exerce sobre mim uma influência marcante. Gosto de ter sonhos, alguns impossíveis. Este texto tem sabedoria e tem o poder de mostrar que as questões que vivemos hoje, causa de tantas injustiças e maldades, fazem parte da história humana. Dom Quixote foi publicado na primeira metade do século XVII, e, apesar de existir há quatro séculos, é uma obra que tem atualidade. Fato, inclusive, bem comentado na longa fila do banheiro feminino, quando o espetáculo terminou.
O romance do cavaleiro errante, de Miguel de Cervantes, revolucionou a literatura, ao mostrar o seu poder de descrever os sentimentos mais nobres, de utilizar da ironia e do humor para revelar as relações humanas e suas mazelas. Além de ser um dos livros mais lidos do mundo em todos os tempos, faz o leitor viajar pelo imaginário e deparar-se com seus sentimentos mais íntimos. Ah, todos nós temos um Dom Quixote dentro de nós, um personagem louco, capaz de mostrar que nossos ideais e inquietações não podem ficar acomodados face aos impedimentos e malvadezas da vida.
Mas hoje, especialmente, sentada próxima ao palco, cantando Sonho Impossível, viajei pela minha vida adentro, revendo o momento em que comecei a gostar da literatura. E foi, justamente, a filosofia de Dom Quixote, que não me permitiu parar diante da vontade de escrever e de montar peças de teatro. É. Eu comecei a escrever, fazendo textos em dramaturgia e montando peças de teatro. Lidando a todos os momentos com os limites mais desafiadores. Renascendo todos os dias. Perdendo a voz e reconquistando a força dos braços. Quantas vezes, horas antes da estreia de um espetáculo, tinha a nítida impressão de que a apresentação teria inúmeras dificuldades. E, quando a cortina abria, tudo dava certo. E eu concluía baixinho: valeu a pena sonhar.
Ao mesmo tempo em que é instigador, o grande desafio é a transformação de um texto literário em uma encenação teatral. É uma delicada e trabalhosa viagem. A transposição de cada frase para um ato cênico envolve um universo de elementos para os quais o adaptador precisa ter ciência em todos os seus detalhes. O primeiro deles é conhecer o autor e compreender seus motivos. O texto dramatúrgico nunca conseguirá mostrar uma imagem fidedigna do romance ou do conto; há um distanciamento, até porque os olhos de quem faz a adaptação não possuem as mesmas cores dos do autor. E quem assiste, de alguma forma, aprecia captar o sentido da obra; gosta de perceber as possíveis nuances entre o texto literário e o texto dramatúrgico.
Como deve ter sido delicado abrir as páginas de Dom Quixote nos palcos. Todos os envolvidos, do iluminador ao figurinista, dos atores ao cenógrafo, precisaram mergulhar na obra literária para visualizar seu trabalho, cena por cena. Cada uma das pessoas envolvidas, porque teatro é um trabalho de equipe, saiu de si mesmo, incorporou a alma do autor para conseguir dançar e saltitar sobre suas palavras.
Ainda vou voltar a fazer teatro. Foi um tempo muito feliz em minha vida.
Salve, Dom Quixote!
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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