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Prótese dentária
E lá estava a prótese, todos os grampos brilhando, como se nada lhes houvera acontecido
Darlei. Acho que o nome era Darlei. E tinha uma irmã gêmea, Arlei. Ou era ao contrário: Arlei era ele; ela, Darlei. Mas não vem ao caso, que o caso é protético. A gente era criança, vivia armando arapuca para pegar passarinho. Não que eu tivesse melhor coração do que os outros meninos, talvez fosse apenas mais covarde. O fato é que nunca consegui estrangular, depenar, assar na fogueira de gravetos e depois devorar os passarinhos acaso aprisionados. Essa era a maior maldade dos meninos da minha infância. Já os adultos! Viviam de olho nos acontecimentos das casas vizinhas. E foi assim que ficamos sabendo do acontecido com Arlei. Não, Darlei é mais provável.
De olho nas arapucas e ouvidos na conversa dos adultos, ficamos sabendo que Darlei usava uma prótese dentária. Coisa tão fina que Darlei acostumou-se a sorrir meio de lado, de modo a deixar mais visíveis os grampos que trazia na boca. Obra do prático Romildo Menezes, que antes de dedicar-se à odontologia, fora auxiliar de padeiro, porteiro de edifício e, finalmente, assistente de dentista. Injustamente demitido deste último emprego, abriu seu próprio consultório no bairro modesto onde eu morava.
Pois era de Romildo Menezes a peça que Darlei usava com orgulho. Eis que nada é perfeito neste mundo e Darlei fumava muito, especialmente na privada. A nada mais podendo dedicar-se durante aqueles preciosos momentos, Darlei ficava sentado no vaso, queimando um cigarro após o outro. Da calçada em frente era possível ver a fumaça saindo pelas frestas da janela. Todo o bairro sabia quando o rapaz estava lá dentro, fumando e meditando. Uma vez a molecada resolveu contar o tempo, alguém trazia o relógio do pai e ficava marcando. O recorde de Darlei foi de 28 minutos e sete cigarros.
Então, nada sendo perfeito, como já se disse, um dia o fumante engasgou-se na própria chaminé, teve um acesso de tosse de arrebentar os peitos e... Um instante de suspense... Fosse na televisão, agora entravam os comerciais. Bom, não adianta continuar enrolando. Vamos aos fatos. Tanto Darlei tossiu que cuspiu longe a obra-prima de Romildo Menezes. A qual, ignorando o seu expressivo valor econômico e estético, foi cair dentro do vaso sanitário, do qual Darlei se levantara inopinadamente, em busca do ar que a tosse lhe roubara. O que, aliás, o obrigou a abrir por um instante a já mencionada janela.
Nosso herói ausentou-se das ruas do bairro por três dias inteiros. Ouvindo as tagarelices dos adultos, ficamos sabendo que ele pacientemente pescara o roth do fundo do vaso, usando para isso uma escova de dentes. Eis aí o drama. A escova, Arlei jogara no lixo logo após tê-la usado como anzol. Mas, quanto à prótese, vacilava. Fazer outra não ficava barato e, além do mais, talvez não saísse tão perfeita. Romildo bebia um pouco além do que recomenda a boa prática odontológica e nem sempre atingia a perfeição obtida no trabalho de Darlei.
Para os meninos do bairro, foram três dias de expectativa. Darlei reaproveitaria o roth, encomendaria outro a Romildo, ou simplesmente ficaria desdentado para sempre, logo agora que seu sorriso de lado tornara-se quase natural? Organizou-se até uma loteria. Cada garoto trazia um gibi e apostava se a peça aviltada voltaria ou não a ser usada. Para depositário fiel dos gibis foi escolhido um pirralho chamado Wandick, que passava por sobrinho de padre e, portanto, parecia-nos mais confiável. Verdade que, caso encerrado, faltavam um Super-Homem e um Pato Donald, o que provocou brigas generalizadas e em muito abalou a fé católica daquela geração.
Três dias, três da tarde. Abre-se a porta da casa e Arlei meio que aparece. Olha para um lado, olha para outro e não vê ninguém de tocaia. Faz sinal para o irmão, que sai de cabeça erguida e toma o rumo do conceituado Bar e Armazém Aqui Estamos. Coube a Laurindo, que estava de sentinela, dar o aviso. Em poucos minutos o Aqui Estamos transformara-se numa praça sitiada. Um trago aqui, outro daqui a pouquinho, Darlei acabou se esquecendo do incidente que por três dias o mantivera prisioneiro. Virando-se para a rua e sem reparar nos meninos, sorriu. Aquele inconfundível sorriso lateral. E lá estava a prótese, todos os grampos brilhando, como se nada lhes houvera acontecido.
Com Darlei aprendemos duas preciosas lições. A primeira, a de que fumar só traz malefícios. A segunda, de que não existe neste mundo nenhum objeto que água e sabão (ou escova e creme dental), não limpem e façam brilhar novamente, por maior que tenha sido a sujeira em que tal objeto tenha sido mergulhado.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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