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Quando os animais despertam os escritores
Os animais fazem parte da cultura de um lugar e da história da vida de
famílias. Todos guardam memórias das circunstâncias com eles
experimentadas, seja de amorosidade, simpatia ou mesmo de temor. Quem
deles não guarda as mais incríveis sensações, que vão do pânico ao amor
profundo?
Recebi do meu amigo Ovídio o livro Na Varanda, constituído por artigos e
ensaios de crítica literária. Comecei a lê-lo, e me detive no segundo capítulo
em que ele faz uma resenha sobre a obra de Jack London, Caninos Brancos,
escrita há duzentos anos aproximadamente. A história é sobre um lobo,
narrada nas florestas geladas ao norte do Canadá.
Não é uma narrativa infantil. Pelo contrário, o texto mostra a rudeza da
vida selvagem; a fome e o clima das regiões árticas, onde homens e animais
vivenciavam situações de sobrevivência extremamente sofridas. Tão logo virei
a segunda página, senti bem-estar por viver numa época e num lugar
confortável à condição humana.
Como o mundo evoluiu em duzentos anos!
Jack London, autor clássico da literatura universal, descreve as cenas
com a presteza de um mestre, fazendo o leitor mergulhar na situação ficcional,
como se estivesse inserido num contexto real. Se é difícil, certamente,
mencionar a fome, o frio, o medo ante a morte iminente, é quase impossível
descrevê-los, desvelando o âmago das emoções. Ele o faz tão bem que o leitor
não faz diferença entre os personagens humanos e os animais. Os dois se
misturam. Diante da sobrevivência, quando um se defronta com o outro,
homens e lobos, vence o mais ágil e inteligente. No mundo natural, nem
sempre, é o homem. Caninos Brancos comprova, página a página, a teoria de
Darwin a respeito dos mais aptos e adaptados. Neste aspecto, o texto é
tocante e instigante, uma vez que joga por terra a suposta superioridade da
racionalidade humana. O homem, sem seus apetrechos de ataque e defesa,
como as armas, pode ser abatido por um animal.
Aí, a história me faz pensar na covardia do homem em relação aos
animais. Jack London expõe a maldade humana protegida por tantos artifícios,
como cordas e correntes, elementos de dominação da época. Ao mesmo
tempo, descreve como o animal recorre à intuição e à inteligência natural das
coisas para não perecer ao poder perverso do homem e à terrível natureza do
ártico.
As memórias que guardo dos animais me fazem constatar que para
alguns fui tão cruel quanto aos personagens humanos do livro, como para com
os insetos, cobras e aranhas; em muitas situações, exterminei-os sem
necessidade. Por outro lado, com outros, como os cachorros, tive uma relação
de profundo amor.
Ainda estou no meio da leitura. Este livro vai me permitir ver a vida de
forma diferente. Talvez meus olhos se tornem mais caninos e consiga enxergar
melhor no escuro. Ah, como estamos cercados deles, mesmo sob holofotes!
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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