Colunas
Cacos de vidro
Sobre ele nada mais pesa. Leve é a mão dos anjos
Serenou este meu amigo e, dentre todos os que o conheceram e amaram, a vida me escolheu para vê-lo em primeiro lugar, assim sereno e descansado. A vida ou a morte, mais provavelmente ambas, tão juntas e unidas andam essas duas fadas madrinhas do nosso destino.
Não sinto ainda nenhuma falta do outro ele que eu conheci. O que andava e falava, comia e bebia, dormia e ainda acordava. A falta virá depois, mas, neste instante de silêncio e peso, é mero vento em alto mar, longe, bem longe da praia. Sinto, sim, um vazio estranho, como se eu também tivesse me ausentado daqui, talvez para acompanhá-lo ao portão.
Aquele poeta dentuço, que também já virou eternidade, murmura através das brancas paredes azulejadas: “Amanhã que é dia dos mortos/ Vai ao cemitério. Vai/ E procura entre as sepulturas/ A sepultura de meu pai./ Leva três rosas bem bonitas./ Ajoelha e reza uma oração./ Não pelo pai, mas pelo filho:/ O filho tem mais precisão”.
Sim, rezaremos por ele, e nisso faremos bem. Mais lógico, no entanto, se fôssemos capazes de tamanha lógica, seria crer que agora mesmo, na agora definitiva, é ele que reza por nós. Nós temos mais precisão. Ele se libertou de toda dor, de toda ânsia, de toda ilusão. É, mais do que em qualquer outro momento, uno e inteiro. Nada mais o divide ou assusta. Nós, os que vamos nos acercando do que dele, provisoriamente, ficou aqui, ainda nos debatemos, e tanto, que acabamos por transformar a vida em “uma agitação feroz e sem finalidade”, como dizia o mesmo poeta.
Do outro lado, ele nos contempla com o olhar tranquilo de quem integrou todas as coisas boas e todas as coisas tristes deste mundo numa realidade nova, harmônica e conclusiva. Mais cedo do que nós, ele aprendeu: que prazer, riqueza, poder e tudo o mais por que lutamos são apenas cacos de vidro, fragmentos insatisfatórios de um vitrô absurdo.
Tranquilo ele está, não julga mais, nem se justifica. Ao seu redor não há mais crianças de cara e coração envelhecidos pelo sofrimento, trabalhador nenhum vende o seu dia por insuficientes moedas. Ninguém mais pode andar armado, a pretexto de defendê-lo. Não vale mais, em seu nome, condenar e punir. Alimenta-se de nuvens coloridas, numa terra onde as pessoas não são brancas, negras ou amarelas e Deus não se dá ao trabalho de ser homem ou mulher.
Mas nós, ai de nós, os que ainda ganhamos o pão com o suor do nosso rosto e, muito frequentemente, com o suor do rosto alheio. Gememos muito com o nosso resfriado e até um pouquinho com o câncer do próximo, esse ser distante. Amamos e desamamos, sofremos e fazemos sofrer. Podemos também acender uma lâmpada em nossa sala e clarear um quarto no coração do vizinho. Há Dulces na Bahia e Teresas em Calcutá, que um pouco nos redimem. Mas o transitório e o imperfeito pesam sobre tudo o que fazemos.
Sobre ele nada mais pesa. Leve é a mão dos anjos.
Ilusão achar que é ele que está aqui, parado, de mãos quietas, à espera de que o venham trajar para a viagem definitiva. O que nele era verdadeiro e permanente já se retirou. Livre de toda a servidão, veste-se de luz. Pela primeira vez, não ama ninguém em particular, fundiu-se no amor cósmico e absoluto. A nós só nos resta, por mais algumas horas, noturnas horas, vigiar o seu simulacro, caminhar amanhã, pela última vez, com este invólucro vazio. É ele que, na verdade, nos acompanha e espera por nós. Não está mais aqui. Só o reencontraremos quando também formos dignos da perfeição que ele há poucos instantes atingiu.
Por que pensar nele como se fosse um aparelho de televisão que saiu do ar por falta de energia elétrica? Ele apenas mudou de canal, foi para outro, está em outra, onde a programação é infinitamente melhor do que este filme classe B, ao qual, por enquanto e sem convicção, chamamos de vida.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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