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Protestantismo: contradições e utopias
Passados quinhentos anos, fica claro que a Reforma de Lutero – e as tantas outras – seguramente colaboraram na construção do ser “moderno”, daquilo que distinguimos como “ocidental” e, principalmente, do que identificamos por “cristão”.
Do ponto de vista político, a “Carta à Nobreza Alemã” demarcou os primórdios das muitas rupturas que houve em relação ao centro do poder em Roma. Do ponto de vista teológico, o conteúdo das 95 teses e os desdobramentos doutrinários do pensamento luterano preconizaram uma forma nova de experimentar a espiritualidade cristã – profundamente intrincada com a filosofia humanista, com a arte renascentista, com a ética capitalista, com a política dos estados nacionais e com a espiritualidade leiga. A Reforma é, ao mesmo tempo, causa e consequência desse novo tempo que se instituía – a Modernidade.
Foi Max Weber quem tentou exprimir uma face dessa relação em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Com o advento do protestantismo, a cultura católica dominante sofreu uma profunda transformação: a lógica do perdão por meio de indulgências compradas, a proibição da usura e o elogio do ócio foram convertidos pela ideia de que a salvação é fruto exclusivo da providência divina, que, por sua vez (e esse detalhe é fundamental para a compreensão) enxerga no trabalho humano a face de sua vontade. Para o protestante, o trabalho enobrece, pois é parte de uma rotina que afasta do pecado. Essa mudança no comportamento social suscitaria uma abrupta mudança no cenário econômico. Se o católico trabalhava para viver, o protestante vivia para trabalhar.
Obviamente, o modo de vida baseado na fé protestante contribuiu para o acúmulo de capitais e as exclusões decorrentes dessa visão egocêntrica da realidade. Mas inspirou no indivíduo o sentimento de quem se enxerga como capaz de gerir sua própria vida. É a permanente tensão entre egoísmo e autonomia.
Há, todavia, outros fatores indispensáveis para a compreensão da Reforma que passam pela reflexão, por exemplo, sobre o “sacerdócio universal de todos os cristãos” – doutrina que relativiza o lugar dos sacerdotes e fragiliza o poder social da igreja; e, ainda, a reflexão a respeito dos “solas” (sola scripitura, sola fide, sola gratia). A escritura como uma única fonte formal da doutrina – o que fragilizava o espaço da igreja institucional. A fé como único meio de adesão à obra realizada por Deus na vida humana – que concedia radical autonomia ao indivíduo (que passava a ser visto como alguém com comunhão direta com Deus, sem as intermediações de uma instituição). E, notadamente, a graça de Deus que, sem qualquer merecimento humano, age em benefício da pessoa.
O surpreendente nessa estrutura é que, em certo sentido, a graça relativiza as anteriores. Independente de uma doutrina escriturística ou da adesão por meio da fé, o cristão protestante tem sua espiritualidade calcada numa visão mais livre de Deus – uma divindade que ama graciosamente e outorga benefícios aos seus filhos por pura liberalidade, generosidade e amorosidade. Se é verdade que a doutrina da graça precisa ser lida ao lado do conceito de justiça (para não se cair numa visão irresponsável da existência), é verdade também que faz com que se rompa com o ciclo opressor das relações de causa e consequência. Pela lógica da graça, a vida e a liberdade humana ganham autonomia. Por isso, talvez, o próprio desenvolvimento do protestantismo tenha, passo a passo, se afastado dessa tese germinal da graça. A instituição não suporta essa dinâmica da absoluta liberdade.
Na gênese do protestantismo, está uma visão de Deus profundamente revolucionária – pautada pela graciosidade. E essa teologia muda radicalmente a antropologia. O ser humano passa a ser considerado sob a lógica da liberdade. Deus e o ser humano se encontram e se experimentam mutuamente na livre comunhão. Nessa forma de ver as coisas, habita potencialmente a principal característica da modernidade: o individualismo, com suas contradições e seus desdobramentos políticos (democracia), econômicos (liberalismo, socialismo), jurídicos (estado de direito), sociais (educação, cultura etc) e psicológicos (egoísmo, autoconfiança).
Os protestantes foram assim denominados em razão do protesto de Lutero perante a instituição romana. Há, todavia, mais que isso em pauta: protestar é um ingrediente humano por excelência – que é impossível de ser contido por qualquer instituição que seja. E só há impulso para o protesto quando ocorre, ao mesmo tempo, insatisfação com o atual estado de coisas e fé na transformação dele.
Por isso, hoje, os protestantes não estão necessária ou exclusivamente nas igrejas protestantes (que não podem ser confundidas com determinadas expressões institucionais do cenário evangélico brasileiro), mas em todos os cantos onde há gente reclamando por uma sociedade de solidariedade e justiça social – mesmo que sem o colorido próprio da fé religiosa.
Do mesmo modo que as instituições religiosas têm se esforçado por matar as sementes do protesto, é fato também que há protestantes entre crentes, agnósticos e ateus. E isso é muito bom. Afinal, a vida exige uma fé genuinamente protestante: que saiba, ao mesmo tempo, promover a denúncia e alimentar a utopia.
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