Variedades

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Variedades

Completamente congestionado o trânsito entre a mesa onde repousava o caixão e a mesa de onde provinha o cheiro quente de broa e café

Por vocação e profissão, há muitos anos tenho procurado conviver com a gramática em clima de mútuo respeito, embora eu reconheça não faltar razão a Luiz Fernando Veríssimo quando diz que a gramática precisa apanhar todos os dias para aprender quem é que manda. Da minha parte, no entanto, evito bater muito na língua portuguesa, que, coitada, já apanha bastante da maioria dos brasileiros. A palavra é de prata, o silêncio é de ouro, ensina um antigo ditado. Então, o único jeito de não errar seria ficar calado, oralmente e por escrito. Quem abre a boca ou redige um texto, coisas que eu, bem ou mal (provavelmente mais mal do que bem) venho fazendo há muitos anos, arrisca-se a acumular material suficiente para publicar uma antologia dos erros que cometeu. Aliás, se algum leitor se interessar pela ideia, só peço que divida comigo o dinheiro que faturar com a venda da obra.

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Mas há erros divertidos, quando não criativos. Um amigo me contou um desses casos, que teria ocorrido em Bom Jardim. Mas, para evitar conflitos com a população daquela cidade vizinha, direi que aconteceu, digamos, em Maceió. Trata-se de um velório, ocasião pouco propícia a piadas. Por isso mesmo, conto o fato tão somente como registro histórico, sem intenção de fazer graça com assunto dessa solenidade. Eis que faleceu em Bom...  digo, em Maceió, uma das pessoas gradas do lugar, mulher caridosa, querida e conhecida até por quem não a conhecia. Em razão do que, desde a manhã do dia do sepultamento, a casa ficou cheia de não se poder tirar a mão do bolso, por falta de espaço.

Para complicar, alguém teve a infeliz ideia de servir um cafezinho fresco com broa de milho, o que atraiu para dentro da sala até quem estava do outro lado da calçada, esperando a vez de se despedir da conterrânea que também se despedia. Aí foi um empurra-empurra danado, completamente congestionado o trânsito entre a mesa onde repousava o caixão e a mesa de onde provinha o cheiro quente de broa e café. Era gente demais e agora mesmo é que ninguém saía da frente do caixão, contemplando a falecida e saboreando o lanchinho. A família tentava botar ordem na situação, sem grandes resultados. Foi aí que uma velha tia, com a autoridade que só as velhas tias sabem ter, sentenciou:

- Que já oiô cai fora, que é pra quem não oiô podê oiá.

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A essa mesma senhora é atribuída uma declaração que pouca gente ousa fazer em público. O marido, também já encarquilhadinho, certo dia deu por encerrada a cumplicidade de quartos e camas que mantiveram por mais de 50 anos. E o fez por meio de uma declaração em português solene:

- É, minha velha, agora acabou. É só lembrar como foi bom, e ainda bem que a gente tem do que lembrar!

Ao que ela respondeu, com a serenidade das rainhas que abdicam:

- É assim mesmo, meu velho, vontade é coisa que dá e passa. Até que demorou a passar!

*****

Certa vez uma palavra escrita por mim foi transcrita tão estropiada que não pude deixar de reclamar. Isso foi no tempo da televisão à lenha, quando a gente mandava o texto datilografado ou mesmo manuscrito e na redação alguém o copiava. Pois esse alguém jurou que havia transcrito letra por letra e que, portanto, o erro era meu. O original já tinha sido jogado fora e, assim, não foi possível identificar o autor do crime. Criado o impasse, o jeito foi nos absolvermos mutuamente (o que, aliás, devíamos fazer em todas as circunstâncias do idioma e da vida).

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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