Uma analogia

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

De repente, um daqueles deserdados da bola dá um drible de fazer inveja a Garrincha

Quem viaja por qualquer canto do nosso país e se dá ao trabalho de olhar pela janela do carro, não pode deixar de reparar nos incontáveis campos de futebol que margeiam as estradas. Maracanãs improvisados, a poucos metros do asfalto, cheios de poeira ou lama. Às vezes nada mais do que um pedaço de pasto, do qual provisoriamente bois e cavalos foram alijados.

Esforçados atletas correm atrás da bola, bufando para levá-la até as duas estacas que constituem o gol adversário. Quando não estão nessa luta, enfrentam outras batalhas igualmente duras: são pedreiros, sapateiros, vaqueiros, enfim, brasileiros. Se os viajantes passam distraídos e não lhes prestam atenção, basta-lhes a torcida que se junta à beira do campo, ou se acomoda nos barrancos vizinhos. Ali estão irmãos, namoradas, companheiros de trabalho ou simplesmente pessoas que, nada de melhor tendo a fazer de suas tardes de sábado ou manhãs de domingo, vêm se distrair com essas toscas imitações dos grandes clássicos. Se faltam craques de verdade, sobejam nomes gloriosos: Vascão, Flamenguinho, Palmeirense, Real Madrid...

Os atletas são amadores, no sentido mais radical da palavra: é simplesmente por amor que suam as camisas multicoloridas. Não o fazem pelos aplausos (que raramente colhem), nem pela fama (que nunca alcançam), nem pelo dinheiro (que jamais veem). Cotizam-se para comprar as bolas, os uniformes, e para pagar a cerveja com pastel, depois do prélio. Mesmo assim, tendo por prêmio apenas bolhas nos pés e marcas arroxeadas nas canelas, sentem-se felizes porque semanalmente podem adentrar o gramado (quase sempre sem grama) e, jogando bem ou mal, exercitar os músculos, distrair a pequena torcida que veio prestigiar o confronto.

E o mais notável é que, não havendo ali pelés ou zicos, não é impossível, e talvez nem seja raro, que grandes jogadas aconteçam. Porque mesmo o beque de roça tem seu dia de Nilton Santos, até o maior frangueiro comete acrobáticas defesas. De repente, um daqueles deserdados da bola dá um drible de fazer inveja a Garrincha. No meio da poeira e sob o sol quente, acontece uma bicicleta que nada fica a dever às de Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”.

Também são assim os diletantes que, longe da grande imprensa e a distância das editoras importantes, vivem escrevendo, embora não vivam de escrever. Jogadores de várzea, atletas anônimos, modestos operários de uma profissão que faz a glória e a imortalidade de outros. Incapazes, no entanto, de abandonar o jogo, ao qual se dedicam com a concentração dos grandes e a humildade dos pequenos. Quase sempre com paixão, às vezes com talento, vão marcando gols que, se não revolucionam a literatura, também não a diminuem, pois um campeonato não se disputa só com mestres da bola, e nenhum exército se forma só de generais.

Grande é o poder da palavra e frequentemente acontece que é nas páginas de um jornal modesto que o leitor se depara com uma ideia que lhe toca a inteligência e o coração. Ou é no livro mais discreto que encontra alívio para seu drama, ao descobrir que toda dor individual não é mais que um grão de areia na infindável praia do sofrimento universal.

Assim, o amador das letras sente-se regiamente pago quando fulana lhe diz que riu muito ao ler certa história que ele escreveu. Sente-se regiamente pago quando sicrano lhe explica como, por causa de um de seus textos, retornou à infância, reviveu certo momento da juventude, lembrou-se de um amor tido, havido e perdido. Sente-se regiamente pago diante da certeza de que entrou em sintonia com uma sensibilidade que estava do outro lado da página. Deve ser o mesmo que o craque da várzea experimenta quando, após um lance feliz, ouve o grito vindo da torcida: “Grande jogada, Maneco! Beleza de gol!”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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