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Nada mais ideológico que a ideia de ideologia
Há palavras que dizem muito e explicam pouco. Servem para muitos fins e, na discussão mais detida sobre o tema, fica muito “não dito”. É o que ocorre com o termo “ideologia”.
Na história da filosofia, houve visões valorativas sobre o conceito. E, portanto, mais ou menos otimistas ou pessimistas sobre a questão.
Antônio Gramsci, por exemplo, partia do princípio que as ideologias “organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciências de sua posição, lutam, etc”. Para ele, tem a ver com “o significado mais amplo de uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas e que tem por função conservar a unidade de todo bloco social”.
Por outro lado, para Karl Marx, ideologia deveria ser compreendida, de um lado, num sentido crítico, como conjunto de ideias que elaboram uma compreensão da realidade; de outro, negativo, como conjunto de ideias que dissimulam a realidade, porque mostram as coisas de forma apenas parcial ou distorcida.
Nessa esteira, ideologia indica um conhecimento não-crítico que mascara as formas de dominação existentes na sociedade; um conjunto de representações e ideias, bem como de normas de conduta, por meio das quais o indivíduo é levado a pensar, sentir e agir da maneira que convém à classe que detém o poder; uma consciência da realidade que camufla as tensões que há na sociedade, e a apresenta como una, harmônica – como se todos partilhassem dos mesmos objetivos e ideais.
Para que haja êxito, os sistemas ideológicos não são simplesmente “implantados”. Há, por exemplo, uma ideia de “anterioridade”. A ideologia funciona como um conjunto de valores destinado a prescrever, de antemão, os modos de pensar, sentir e agir.
Outro traço constitutivo é a “generalização”. Busca-se um consenso coletivo em torno de certas teses e valores. O “bem de alguns” é difundido como se fosse “o bem comum”.
Não menos poderosa é a ideia de que a ideologia se constrói na base de lacunas, de omissões e de silêncios. Uma lógica montada para ocultar em vez de revelar. Suas “verdades”, por isso, parecem naturais, plenamente justificadas, válidas para todos os homens e para todo o sempre.
Jürgen Habermas fez uma importante contribuição ao mostrar o quão ideológico é o discurso científico e que a atual consciência tecnocrática se impõe em nome da economia e da eficiência. Para ele, a intromissão da ação instrumental (justificada pela eficiência científica) em outros domínios da vida empobrece a subjetividade, pois não se avaliam as ações por serem justas ou injustas, mas se são eficazes. As ações orientam-se pela competição, pelo individualismo, pela busca do rendimento.
Em outra direção, Paul Ricoeur (analisando Marx, Nietzsche e Freud – “mestres da suspeita”) faz uma excelente provocação: por que há a pretensão de se considerar isento da deformação ideológica? É como se o crítico dissesse: “a ideologia é o pensamento de meu adversário; é o pensamento do outro. Ele não sabe, eu, porém sei”. Ricouer não discorda dos fundamentos marxistas, mas adverte para o risco de “naturalizá-los”. Afinal, são, também, ideias.
Nesse emaranhado de conceitos, todavia, não se deve cair no equívoco de que há um determinismo em todo processo ideológico. A ação e o pensamento humano nunca se acham totalmente determinados. Sempre haverá espaços de crítica. A contra ideologia é possível porque há, em algum canto preservado, liberdade.
É nesse tom que Bertold Brecht se expressa: “Diante dos acontecimentos de cada dia; numa época em que reina a confusão; em que corre sangue, em que se ordena a desordem, em que o arbitrário tem força de lei, em que a humanidade se desumaniza; não digam nunca ‘isso é natural.’”
Todo saber e toda ação são, por assim dizer, “ideológicos”. Fundamentam-se, consciente ou inconscientemente, sobre conjuntos de ideias e valores. O que faz a diferença, porém, não é apenas ideológico; é, primeiramente, “ético”.
O termo “ideologia” é, pelo visto, ideologicamente utilizado de todos modos convenientes. Para o bem e para o mal.
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