Palavras e azeite verde

terça-feira, 06 de junho de 2017

Alimentos e literatura se combinam. Melhor ainda se cozidos em panelas de barro e escritas pelas teclas da máquina de escrever. Ambos são curtidos; precisam de tempo e paciência. De elaboração. Prosas poéticas e massas de pão, quando produzidas, exigem delicadeza e intuição. Ambas têm ponto de feitura. Ponto exato. Se o escritor ou o cozinheiro o perdem, têm seus esforços perdidos. Ora se não é melhor passear. As belas da tarde... Ah, como sabem usar bem o tempo.

Vou confessar que comi brigadeiro, paçoca e doces cristalizados antes de escrever esta coluna, apenas para me abastecer de palavras açucaradas. Certamente, as panquecas de pimenta me fariam sentir ardida e esse tema me é especial porque me fiz em cozinhas, aconchegada por pessoas que sabiam transformar colheres de pau em histórias. Como amei minha mãe preta e como chorei quando ela se foi. Até hoje a sinto ao meu lado, me chamando de “doce de coco”. Bela mulher de turbante branco que me ensinou a cozinhar e a amar. Que me embalava no colo e me deixava sentar aos seus pés enquanto costurava. Seus pés negros me honraram e me deram ponto.

Sou neta da dona Vera que me deixou a maior herança que uma avó pode deixar: um livro de receitas da minha bisavó, em que nos orientavam a bater ovos com batedor de aço, daqueles de fazer doer os braços. De fritar o pastel com pingos de óleo quente. De amassar a massa de macarrão com a palma da mão e a de empadão com a ponta dos dedos. Ela tinha mãos macias e suaves. Também não era para ser diferente, vovó sabia misturar a pele do corpo com a massa até dar o ponto e pressentia a chegada daquele momento único, como o de um gozo pleno. Ela o intuía pelo cheiro e pelo tato. Pelo sorriso da massa. Uma boa massa suspira ao cozinheiro, como um bom texto lhe oferece tímidos sorrisos. Conversam com seus autores. Alimentos e palavras são bons prosadores.

Cozinhar e escrever são lidas solitárias, entretanto são fazeres que não têm a voz do silêncio, mesmo seus autores estando nele mergulhados. Têm a voz secreta do dono que descortina sábia filosofia a cada página, a cada panela. Que redescobre o anseio pelo prazer de degustar sabores e ideias.  Escritores e cozinheiros são servos. Servem a outrem. Não gostam de fazer contos e paellas para si. Conhecem os hábitos dos gulosos leitores que vivem perambulando por aí em busca de alimentos fartos. Reconhecem seus escuros e sabem chegar nas margens do desassossego com ingredientes e palavras. Doam-se.

David Massena, meu amigo e vizinho de longa data, ao lado de Débora Simões, tiveram a ideia de fazer uma conversa no Bar América a que chamaram de Chopp com Letras, enquanto momentos de entrelaçamento entre a gastronomia com a arte literária, fazendo-as tocarem uma na outra, como os braços que apertam o acordeão. A biografia de Astor Piazzolla, compositor de Adios Nonino, uma das mais belas composições do século passado, a meu ver, tem gosto de fios de ovos.

Quem escreve ou cozinha conquista a liberdade interior por que as bocas de forno nos aquecem e os dicionários nos iluminam.

A oliveira certamente é a mais preciosa das dádivas do céu. (Thomas Jefferson)

A literatura é sempre uma expedição à verdade. (Franz Kafka)

Ninguém pode ser sábio de estômago vazio (George Eliot)  

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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