Colunas
É uma loucura!
... se tantos são os doidos, ser doido é o normal
A senhora que vai à minha frente conversa tão animadamente que retardo o passo para observá-la. Falta de educação minha, reconheço, mas como não dar especial atenção a quem anda assim, num bate-papo tão animado pelas calçadas? E lá estava ela, alternando vozes, contrapondo argumentos, pontuando com gestos expressivos seus pontos-de-vista. Conversa educada, nenhum exagero, nada de ofensas. Mas também, é forçoso reconhecer, sem conciliação entre os interlocutores. Às vezes ela passava a mão na testa, num movimento impaciente, mas logo se acalmava e voltava a desfilar raciocínios, exemplos, ponderações. Parecia uma velha mãe doutrinando o filho cabeça-dura.
Até aí, tudo bem. Não há lei que impeça as pessoas de conversarem enquanto vão caminhando para casa, após um longo dia de trabalho. Em se tratando dessa senhora, todavia, o caso tinha a particularidade de que ela estava falando sozinha. Ou, melhor dizendo, falava com uma pessoa que somente ela via e ouvia, porque falar sozinho, de fato, ninguém fala. Fala-se, sim, com alguém invisível, mas presente, pois, já dizia Exupéry, “só se vê bem com o coração; o essencial é invisível aos olhos”.
Confesso que fiquei quase feliz ao vê-la dialogar com o vazio, na sua loucura contida, civilizada. Até me lembrei de alguns malucos que conheci nos longes da minha infância, e acabei concluindo que já não se fazem mais loucos como os de antigamente. Quando eu era garoto, todo bairro que se prezasse tinha o seu destrambelhado particular, do qual cuidava com orgulho e carinho. Ah, os doidos de antigamente! Serviam para capinar o quintal, levar recados, até mesmo para tomar conta das crianças eles serviam.
Não assim os de agora. Atualmente, quando um sujeito resolve desvairar, não faz por menos: pega um fuzil, entra numa lanchonete e mata 10, 20 pessoas. Ou então funda uma religião, explica para Deus como é que as coisas devem ser e, não obtendo a compreensão de Deus no céu nem dos homens na terra, resolve explodir-se em algum lugar onde possa fazer um grande estrago. Os tantãs dos velhos tempos eram Napoleão, Princesa Isabel ou Sheik de Agadir e só ficavam chateados quando alguém não lhes reconhecia a verdadeira identidade e insistia em chamá-los de João, Madalena ou Teotônio.
Contaram-me que um exame nos motoristas de ônibus do Rio de Janeiro comprovou que 60 ou 70% deles padeciam de alguma perturbação mental. O que me espantou foi saber que 30 ou 40% deles ainda conseguem manter um pouco de lucidez, mesmo dirigindo o dia inteiro no trânsito carioca. Quando Jânio renunciou, um deputado propôs que a lei passasse a exigir atestado de saúde mental dos futuros pleiteantes à Presidência da República. A ideia não prosperou porque nunca se chegou à conclusão de quem seria bom da bola o bastante para avaliar os candidatos.
Basta ler “O Alienista”, de Machado de Assis. Simão Bacamarte, ilustre médico da capital, instala-se em Itaguaí para dedicar-se ao estudo da loucura. Começa por prender um doido indiscutível e pouco a pouco vai avançando sobre os demais cidadãos, até meter no hospício desde a própria esposa até o prefeito. Quando finalmente o Dr. Bacamarte fica sozinho do lado de fora do manicômio, chega à brilhante conclusão de que, se tantos são os doidos, ser doido é o normal, e só quem tem a cabeça no lugar é que precisa ser metido em camisa de força e retirado do convívio social, a fim de que não mais perturbe a tranquila loucura geral com sua descabida sanidade. E, então, o grande cientista liberta todos os internos e prende-se a si mesmo, numa atitude de tremenda coerência.
“Eu não sou maluco, não!”, é a primeira coisa que todo maluco diz. Não sejamos, pois, tão pretensiosos. Sejamos, sim, benevolentes com os que, neste vasto hospício em que vivemos, ainda conseguem conservar alguma mansidão em sua loucura, pois de médico, poeta e sobretudo de louco todos nós temos um pouco.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário