Sobre mentiras e mentiras

quarta-feira, 08 de março de 2017

O poeta Bilac já falava no “não que desengana, o nunca que alucina”.

Acabo de ler que seis em cada dez pessoas são incapazes de conversar por dez minutos sem mentir ao menos uma vezinha. Se o jornalista não estiver mentindo, isso ficou comprovado em uma longa pesquisa feita por psicólogos americanos. Ou seja, todo mundo é mentiroso, inclusive você, prezado leitor. A exceção parecem ser os políticos brasileiros, cujo amor ao povo e à verdade é inquestionável e pode ser constatada nos discursos e ações com que diariamente eles nos brindam.

Outro dia encontrei de repente uma senhora a quem não via há muitos e bons anos. O impacto que me provocou vê-la sem preparação prévia quase me derrubou, tal a mudança que nela havia feito o tempo, esse implacável roedor das melhores aparências. Provavelmente, não foi menor o susto que ela levou ao ver-me, porque também eu – forçoso é admiti-lo – já estive em mais favoráveis condições físicas (intelectuais, mentais, sociais, financeiras, etc, etc, ad infinitum).

Nada disso impediu que ela exclamasse admirada: “Mas você não mudou nada!”, ao que eu retruquei que também ela continuava em excelente forma. E vejam que não esperamos nem dez minutos, começamos a mentir já de saída. Consideremos, no entanto, que se tratava de mentiras bem intencionadas. O fato é que a vida seria insuportável se disséssemos sempre a verdade. O poeta Bilac já falava no “não que desengana, o nunca que alucina”.

Sei de um casal que viveu por longos anos a mais feliz das uniões, graças à capacidade que ele tinha de mentir com a cara mais sincera, e à facilidade com que ela fingia acreditar nas lorotas que ele contava. É como no conto “Missa do Galo”, obra-prima de Machado de Assis, grande fabricante de obras-primas. O marido sai à noite para ir ao teatro, estando entendido e subentendido que ele vai encontrar a amante, para juntos encenarem aquela velha e sempre nova peça de amor entre quatro paredes. A esposa fica em casa arrastando os chinelos, e talvez - mistérios machadianos! - tenha até arrastado as asas para o jovem hóspede da casa.

Pois com esse casal de que vos falo acontecia coisa semelhante. O safado tinha mais casos extraconjugais do que são os dias do ano, incluindo o ano bissexto. Ao voltar de suas aventuras, explicava direitinho à consorte que passara no hospital para visitar um amigo, ou que ficara na igreja, evitando resfriar-se com a chuva intensa que o surpreendera na saída da missa. Mesmo que ele não tivesse amigo nenhum hospitalizado, e que há dias não chovesse, ela elogiava o bom coração e a prudência dele.

Sim, há mentiras e mentiras. Algumas são tão cruéis e causam tamanhos males que seus autores deviam ser condenados a escrever mil vezes nas paredes da masmorra: “Nunca mais mentirei”, ainda que mais uma vez estivessem mentindo. Mas as mentirinhas de que fala o artigo que li são aquelas inofensivas, às vezes bem intencionadas, ou que a gente diz simplesmente para não ser desagradável. E há até algumas que são de uma grandeza admirável.

Se não estou inventando, é no romance Os Miseráveis que o personagem principal, Jean Valjean, perseguido injustamente pelo implacável policial Javert, esconde-se num convento. Havia lá uma freira cujo juramento diante de Deus era jamais mentir, falar a verdade em qualquer circunstância, ainda que isso lhe custasse a vida. Quando Javert chega ao convento e pergunta por Valjean, a freira se vê diante do dilema, para ela terrível, de quebrar a jura sagrada ou mandar para as galés um homem inocente. O que você faria? O que ela fez? Negou que o fugitivo estivesse escondido ali.

Enfim, a verdade é que há mentiras e mentiras e o que faz com que elas sejam gentis, generosas ou venenosas está mais no que mora no coração do mentiroso do que no que lhe sai pela boca.

TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.