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Sobre mentiras e mentiras
O poeta Bilac já falava no “não que desengana, o nunca que alucina”.
Acabo de ler que seis em cada dez pessoas são incapazes de conversar por dez minutos sem mentir ao menos uma vezinha. Se o jornalista não estiver mentindo, isso ficou comprovado em uma longa pesquisa feita por psicólogos americanos. Ou seja, todo mundo é mentiroso, inclusive você, prezado leitor. A exceção parecem ser os políticos brasileiros, cujo amor ao povo e à verdade é inquestionável e pode ser constatada nos discursos e ações com que diariamente eles nos brindam.
Outro dia encontrei de repente uma senhora a quem não via há muitos e bons anos. O impacto que me provocou vê-la sem preparação prévia quase me derrubou, tal a mudança que nela havia feito o tempo, esse implacável roedor das melhores aparências. Provavelmente, não foi menor o susto que ela levou ao ver-me, porque também eu – forçoso é admiti-lo – já estive em mais favoráveis condições físicas (intelectuais, mentais, sociais, financeiras, etc, etc, ad infinitum).
Nada disso impediu que ela exclamasse admirada: “Mas você não mudou nada!”, ao que eu retruquei que também ela continuava em excelente forma. E vejam que não esperamos nem dez minutos, começamos a mentir já de saída. Consideremos, no entanto, que se tratava de mentiras bem intencionadas. O fato é que a vida seria insuportável se disséssemos sempre a verdade. O poeta Bilac já falava no “não que desengana, o nunca que alucina”.
Sei de um casal que viveu por longos anos a mais feliz das uniões, graças à capacidade que ele tinha de mentir com a cara mais sincera, e à facilidade com que ela fingia acreditar nas lorotas que ele contava. É como no conto “Missa do Galo”, obra-prima de Machado de Assis, grande fabricante de obras-primas. O marido sai à noite para ir ao teatro, estando entendido e subentendido que ele vai encontrar a amante, para juntos encenarem aquela velha e sempre nova peça de amor entre quatro paredes. A esposa fica em casa arrastando os chinelos, e talvez - mistérios machadianos! - tenha até arrastado as asas para o jovem hóspede da casa.
Pois com esse casal de que vos falo acontecia coisa semelhante. O safado tinha mais casos extraconjugais do que são os dias do ano, incluindo o ano bissexto. Ao voltar de suas aventuras, explicava direitinho à consorte que passara no hospital para visitar um amigo, ou que ficara na igreja, evitando resfriar-se com a chuva intensa que o surpreendera na saída da missa. Mesmo que ele não tivesse amigo nenhum hospitalizado, e que há dias não chovesse, ela elogiava o bom coração e a prudência dele.
Sim, há mentiras e mentiras. Algumas são tão cruéis e causam tamanhos males que seus autores deviam ser condenados a escrever mil vezes nas paredes da masmorra: “Nunca mais mentirei”, ainda que mais uma vez estivessem mentindo. Mas as mentirinhas de que fala o artigo que li são aquelas inofensivas, às vezes bem intencionadas, ou que a gente diz simplesmente para não ser desagradável. E há até algumas que são de uma grandeza admirável.
Se não estou inventando, é no romance Os Miseráveis que o personagem principal, Jean Valjean, perseguido injustamente pelo implacável policial Javert, esconde-se num convento. Havia lá uma freira cujo juramento diante de Deus era jamais mentir, falar a verdade em qualquer circunstância, ainda que isso lhe custasse a vida. Quando Javert chega ao convento e pergunta por Valjean, a freira se vê diante do dilema, para ela terrível, de quebrar a jura sagrada ou mandar para as galés um homem inocente. O que você faria? O que ela fez? Negou que o fugitivo estivesse escondido ali.
Enfim, a verdade é que há mentiras e mentiras e o que faz com que elas sejam gentis, generosas ou venenosas está mais no que mora no coração do mentiroso do que no que lhe sai pela boca.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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