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Pequenos atrasos
... pelo menos a multa ainda me encontrou vivo!
Acabo de receber uma multa de trânsito, fato não de todo inédito em minha carreira de motorista. Não que eu seja apressado ou imprudente, mas, sendo de fato um tanto distraído, mais de uma vez deixei meu carro sossegadinho embaixo de placas com aquele famoso E com um risco transversal por cima. Enfim, tenho contribuído com alguma regularidade para o bom faturamento dos detrans e autrans, urbi et orbi, como diria o papa.
O que essa multa tem de particular é que a infração, se houve, ocorreu há quase cinco anos, e foi imediatamente contestada. Quando eu pensava que as autoridades já haviam me perdoado por essa faltinha, visto que Deus tem me perdoado coisas muito mais graves, eis que a famigerada cartinha bate à minha porta, para me dizer que nada disso, quem deve ao governo mais cedo ou mais tarde tem que pagar, embora a recíproca não seja verdadeira, muito pelo contrário.
E tenho motivos para pôr em dúvida a veracidade desse crime de lesa-estacionamento, porque certa vez estava eu bem longe de nosso amado Rio de Janeiro e meu carrinho encontrava-se em estado terminal numa conceituada oficina, onde era submetido a um transplante múltiplo de órgãos. Isso não impediu que eu fosse multado numa rua carioca, na qual jamais tinha comparecido, de carro, a pé ou de trem.
A rapidez com que no Brasil a polícia apura e a justiça julga só não é maior do que a rapidez com que os advogados conseguem a anulação da pena ou o bandido foge da cadeia. A multa que acabam de apresentar até me fez lembrar de um caso ocorrido durante a minha modestíssima carreira de servidor público. Dentre as humildes funções com que o estado me honrou na ocasião, destaca-se aquela em que me cabia formalizar pedidos de colegas encrencados com o governo.
Pois um barnabé, depois de bons anos de serviço e residência numa escola, resolveu dar um exemplo de honestidade, talvez na esperança de que o imitassem nos escalões mais altos do poder. Morava esse cidadão numa pequena casa anexa a um colégio estadual. Morava há anos, ali havia tido e criado os filhos que, depois de adultos, bateram asas e foram viver em outra freguesia.
Há tanto tempo lá estava que nem se lembrava de que a casa não lhe pertencia e de que sobre ela não tinha nenhum direito. Mas disso também não se lembrava o verdadeiro dono, isso é: o estado. De modo que tudo corria na mais santa paz, até que o homem teve um ataque de consciência e resolveu regularizar a situação.
Para tanto, entrou com um pedido para que o governo o autorizasse a morar na casa onde há anos morava sem ser incomodado. Tive a tentação de dizer-lhe para calar a boca e ficar quietinho onde estava. Mas, também eu metido a fazer as coisas direito, despachei o pedido. Creio que não demorou nem um ano para que os papeis voltassem às minhas mãos.
As nobres e velozes autoridades encarregadas do caso pediam, no mais escorreito português oficial, que o requerente apresentasse planta e fotos da casa, e mais não sei quantas declarações e certidões pudessem ser pedidas. Imposto de Renda, título de eleitor, carteirinha de sócio do Flamengo e diploma de curso de datilografia, tudo o pobre barnabé providenciou. Despachado, o processo rodou, rolou e engrossou até voltar com um questionamento deveras pertinente: se o servidor em questão ainda desejava continuar morando naquele imóvel.
Infelizmente, não foi possível responder afirmativamente, e por um motivo da maior relevância: tanto havia demorado a decisão das autoridades, que o servidor já estava morando na outra vida, tendo se despedido desta há cerca de oito meses.
Por isso eu me considero feliz por estar sendo multado, embora com grande atraso: pelo menos a multa ainda me encontrou vivo!
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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