As palavras são incontroláveis

quinta-feira, 15 de setembro de 2016
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Eu quis, nesta crônica, continuar a escrever sobre vozes narrativas. Mas, de repente, as palavras começaram a contar a minha história de escritora. Ah!, como as palavras me são incontroláveis! Sei que não adianta brigar com elas, por isso acato esta certa rebeldia porque estão em plena crise de adolescência. Palavras gostam de independência. Entretanto, como ainda não chegaram à maturidade, escapolem e escrevem lembranças, talvez para me fazerem matar as saudades de momentos antigos em que a vida seguia de modo diferente.  

Sou aprendiz de escritor. Assim o serei para sempre; o escritor é um cosmopolita que adentra almas de pessoas, plantas e vagalumes. A cada viagem, conhece um pouco mais das coisas deste todo incerto em que existimos, mas não vai compreendê-lo jamais. E se a isso se atrever, será não mais do que um escrevinhador.

Não comecei assim a me fazer há uns dezoito anos nas oficinas de literatura, que até hoje faço. Sou escritora desde a primeira vez que andei na garupa da bicicleta do tio Pedro. Ah, se todo mundo tivesse um tio Pedro... Quando pequena, ele nos colocava, meus primos e eu, cada um de uma vez, na garupa da sua bicicleta, e fazíamos passeios fantásticos num bosque perto da casa dele em Teresópolis, próximo à cachoeira do Imbuí, onde fugíamos de monstros, ficávamos preparados a sofrer, em cada curva, o ataque de um besouro gigante. A gente deslizava pelas alamedas do bosque, imaginando ver leopardos escondidos nas copas das árvores e duendes atrás das pedras. Começou também com minhas avós que além de me contarem histórias, me deixavam viver meu tempo de criança. Até com meus exigentes professores que me cobravam, corrigiam meus exercícios com caneta vermelha. E olhavam para mim.  

As oficinas me deram contorno e me fizeram esculpir o pouco que sabia. Junto dos meus amigos de escrita e professores, despertei a criatividade, quando desbloqueei o medo de escrever. Ah, como sentia medo! Tinha uma escrita acadêmica, com frases sérias e palavras complicadas. A minha orientadora acadêmica do Mestrado me fazia pesquisar e nada podia escrever sem fundamentar. Brincar com palavras, nem pensar. Como tive medo de sair daquela roupagem terno e gravata! Confesso que tinha preconceitos; o mundo de Alice era um passeio proibido, a não ser como leitora adulta. Mas, aos poucos, fui descontruindo modelos e conseguindo brincar com ideias e palavras, cair no túnel sem fim do País das Maravilhas e escrever sobre pulgas e carrapatos, tratando os insetos como gente de respeito. Contei histórias sobre nascimentos e mortes. Sobre drogas, em cujo processo de escrita de Quase..., conto publicado numa coletânea pela Larousse Jovem, tive uma experiência interessante. Ao escrever sobre esse difícil tema, quis melhor me inteirar do universo da marginalidade e, para tal, pedi a ajuda de um policial que acompanhou a construção do texto, principalmente quanto ao uso da linguagem; usei vozes narrativas fazendo de conta que eram de bandidos e policiais.

Outra inusitada foi a de Um Cão Cheio de Ideias, quando escrevia cartas para o meu personagem, o Labareda. E lá foram tantas. Através desta já ultrapassada forma comunicativa, eu o conheci. E, então, descobri que não é simples saber quem é o personagem criado por nós mesmos. Não é à toa que este filho feito de palavras e vírgulas, muitas vezes, foge ao nosso controle. Todos os meus personagens sempre me fizeram surpresas incríveis, a começar pelo Robervaldoroberval, um carrapato que tinha um nome grande para ser importante.

E, assim, escrevendo, fui descobrindo minha voz narrativa. Autêntica. Uns dizem que viajo na maionese, mas na verdade, não gosto das padronizações da realidade concreta; sinto, pelo contrário, um prazer imenso em me lambuzar com ideias que emergem do quotidiano, tal como saboreio um sorvete de pistache, num fim de tarde ensolarada.

Cada um tem sua voz narrativa. Tão própria quanto as impressões digitais. Para começar a conhecê-la, precisei surfar nas intermináveis listas de palavras dos dicionários, contornando verbetes e conhecendo as palavras em seus sufixos e radicais. Assim. Primeiro, elas nasciam para mim e eu me encantava com cada uma de forma especial. Depois, engatinharam e eu cuidava para que não se machucassem nas frases, principalmente se caíssem, por descuido, entre palavras destoantes. Depois se tornaram aventureiras, quando se arriscavam saltar entre pronomes e verbos ou escalavam sujeitos e predicados. Muitas vezes, encarnavam complementos nominais e se fantasiavam de locução verbal. E, agora, deram para ter a rebeldia de adolescente.

Pode?  

Pode, do verbo poder, presente do indicativo, expressa a capacidade de agir, deliberar e ter autoridade. Quem tem poder tem força, exerce influência. Tem valimento.

Ah, quem não quer ter o poder de realizar seus sonhos? Quem não consegue realizá-los, dá para escrever. Mas, se, por ventura, conseguir...

P.S.: Não vou pedir perdão por esta conversa maluca de escritor porque foram as palavras que escreveram este texto, não eu.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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