Colunas
Falta de ideias
Enfim, alguns respingos de glória alheia sempre sobram. Alguém já disse que escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto. No meio, põe as ideias. A dificuldade está justamente aí, nas ideias a serem colocadas no meio. Tem horas que as danadas se recusam a vir, como é o meu caso hoje.
Você olha para o computador, o computador olha para você e nenhum dos dois resolve coisa nenhuma. Aí dá aquela tentação de plagiar algum autor não muito conhecido, com a desculpa de que muita gente mais importante fez e faz isso. Você acaba desistindo, não por honestidade, mas porque sabe que algum leitor inconveniente vai se lembrar de já ter lido aquilo em algum lugar e botar a boca no mundo.
Outra possibilidade é copiar a si mesmo, mas tem sempre alguém que só leu você uma vez (e já achou demais), e mesmo assim vai acusá-lo de falta de imaginação. A penúria de ideias às vezes ataca até escritores consagrados e leva-os a cometer atos bem pouco compatíveis com a sã literatura.
Moacyr Scliar, por exemplo, escreveu um livro, “Max e os felinos”, em que um rapaz se vê preso em um barco à deriva pelo oceano, tendo a desagradável companhia de um jaguar. Yann Martel, escritor canadense, leu o livro (embora negue) e achou que era o caso de uma boa ideia mal aproveitada. E tratou de aproveitá-la no seu premiado romance “Life of Pi”, que deu origem ao também premiado filme “As aventuras de Pi”. Qual o assunto? Um rapaz se vê preso em um barco à deriva pelo oceano, tendo a desagradável companhia de um tigre. Pelo menos ele trocou o bicho!
Mas vocês acreditam que até da criação deste modesto escrevinhador já houve quem se apropriasse? Estava eu em São Paulo, folheando livros numa grande livraria, quando me deparei com um título igual ao de uma crônica minha. Bastou ler e primeira linha para saber que não só o título, mas praticamente todo o resto tinha saído da minha cabeça.
Se quem tem muitas ideias não gosta de que as roubem, imagine eu, que tenho tão poucas. De modo que eu não fiquei nada feliz ao me ver enfiado em obra alheia, sem que ao menos me dessem crédito pela parte que me cabia. O que me consolou foi constatar que eu estava em boa companhia. O livro é uma coletânea de mensagens que o “autor” diz ter recebido de amigos e admiradores. Ao constatar que estava ao lado de muita gente famosa, as quais, pelo que pude observar, não reclamavam da minha presença, acabei me conformando por estar ali, ainda que anonimamente. Enfim, alguns respingos de glória alheia sempre sobram para os mais humildes.
Quando a “Revolução Salvadora” (que não salvou nada, porque o povinho brasileiro não colaborou) nos obrigava a desfilar nas datas cívicas, eu procurava marchar ao lado do professor Tessá, que era muito conhecido, muito querido e, por isso mesmo, muito aplaudido. Era ele sendo ovacionado e eu recolhendo os aplausos, me sentindo o rei da avenida. Esse também é um caso de apropriação indébita, concordo.
Mas é pecado menor do que não ter o que colocar entre a primeira letra maiúscula e o ponto final e, ainda assim, teimar em encher a paciência do leitor. É o que certamente acabo de fazer, com este desfile de assuntos erráticos. Mas bem que eu avisei lá no primeiro parágrafo que eu hoje estava mais sem ideias do que de costume.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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