Por causa de um acento

quarta-feira, 03 de fevereiro de 2016

Muitas e estranhas conversões têm ocorrido embaixo dos lençóis

Fizeram uma reforma ortográfica que, entre outras coisas, propôs a eliminação de alguns acentos. A ideia tem adeptos e adversários. Eu estou nessa briga como a Suíça quando os outros países resolvem fazer guerra: na maior neutralidade. Cada um que ponha o assento onde quiser e se quiser.

Mas uma coisa nem mesmo os mais entusiasmados adeptos da abolição da escravatura e dos acentos podem negar: há casos e casos. Outro dia ouvi na TV que um autonomeado pastor havia arrebanhado a esposa do vizinho tanto para sua igreja quanto para sua cama, não sei se nessa ordem. Talvez a cama tenha vindo antes, muitas e estranhas conversões têm ocorrido embaixo dos lençóis. Simplificando, o tal homem havia entrado como terceiro na relação conjugal, aliás, com a completa aquiescência do bom marido. Este, ouvido pelo repórter, mansamente declarou que, se assim era a vontade de Deus, ele aceitava dividir a companheira com aquele que havia revelado para ambos o caminho da salvação.

Mas o que tem isso a ver com reforma ortográfica?, perguntará o leitor. Pergunta pertinente, ainda que um pouco apressada. Tem a ver que, para assim proceder, o religioso dizia se basear na bíblia. Bem sabemos que, dependendo de como se lê, o que mais tem na bíblia são coisas antibíblicas: guerras, assassinatos, traições, e assim vai. Cada religião a interpreta de um jeito, e muitos buscam nela não a verdade eterna que ela contém, e sim a verdade passageira que lhes convém.   

Mas voltemos à pergunta do leitor apressado. “Para quem sabe ler um pingo é letra”, dizia um antigo ditado. Como nem os ditados antigos resistem ao racionalismo do mundo moderno, atualmente se diz que para quem sabe ler um pingo é pingo, só analfabeto é que acha que pingo é letra. O fato é que, conforme as circunstâncias, qualquer sinalzinho vale mais do que uma palavra inteira. E é aí que entra a história de duas ovelhas inocentes e um pastor nem tanto.

Para provar ao repórter que tinha direito a mais de uma mulher, o religioso (?) valeu-se da mesma passagem bíblica com que convencera os frequentadores do seu templo e que, com especial paciência e particular interesse, explicara ao marido. Diante das câmeras, solenemente apanhou as escrituras e leu a recomendação divina: “Acolhe a mulher adultera”. Ali estava a prova: vinda de quem vinha, era mais que uma permissão, era quase uma ordem: “adultera”.

Mas vocês sabem como são esses repórteres, não se contentam com os próprios lenços, metem o nariz onde ninguém os chamou. No caso, o repórter meteu o nariz entre as páginas da bíblia e foi logo acusando: “Mas tem acento no U. Não está escrito “adultera”, e sim “adúltera”.

O pastor mostrou-se verdadeiramente surpreso:

- Ora, vejam só! Um sinalzinho tão pequeno, quase não se nota!

 Apesar da inelutável evidência ortográfica, o bom pastor não entregou os pontos e argumentou que, sim, havia cometido um erro, mas quase tão imperceptível quanto o acento que o causara. De modo que, estando o erro já consolidado, e uma vez que o marido não se opunha à vontade de Deus, atuaria como pastor para a comunidade em geral e, no caso particular daquela senhora, continuaria acumulando as funções de pastor do corpo e da alma.

E ainda tem gente que acha que os acentos não valem nada! Com eles ou sem eles pode-se adulterar até mesmo o Livro Sagrado!

E não vai você agora sair dizendo que eu estou criticando qualquer religião ou quem quer que seja. Por favor, não adultera o que eu escrevi!

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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