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Tá limpo!
A morte demora muito a chegar, e a tentação chega a todo momento
“Em homem nada pega!”, exclamava ela, quando alguém lhe contava mais uma das traições do marido. Depois, com ar sereno, acrescentava: “Tomou um banho, tá limpo!” O homem, tendo a infidelidade conjugal prévia e posteriormente perdoada, sentia-se à vontade para ir coroando de chifres a cabeça da rainha do lar.
O caso é verídico e mais de uma vez ouvi as mulheres da vizinhança comentando o assunto. A esposa traída era muito estimada e admirada. Talvez invejada. No entanto, as demais diziam não aprovar a serenidade com que ela reagia ao fato de o marido ser um contumaz pulador de cerca. Aliás, na prática desse esporte era um verdadeiro campeão olímpico.
“Eu dava um tiro nele”, dizia uma. “Eu tinha saído de casa na primeira vez!”, esbraveja outra. Lembro-me até de uma mais radical que garantia: “Eu cortava o ...”, o que levava a nossa heroína a retrucar, horrorizada: “Isso não! Isso nunca!”
Eu, que pouco ou nada me interessava pela vida amorosa dos outros, pois nessa época andava apaixonado por bolas, piões e pipas coloridas, até hoje não sei como classificar a mansidão daquela distinta senhora. Conformismo diante do inevitável, medo de levar uma surra, orgulho de um marido tão viril, são algumas das hipóteses que me ocorrem.
Não podemos desconsiderar a possibilidade de que, além de trabalhar tanto fora, o adúltero ainda desse conta do leito conjugal com louvor. E que mulher abriria mão de um atleta desse nível por causa de uma derrapada ou outra? E outra e outra e outra...?
Hoje em dia parece que ninguém é de ninguém, na vida tudo passa, e mesmo juras e assinaturas não garantem que um vá ser fiel ao outro até que a morte os separe. A morte demora muito a chegar, e a tentação chega a todo momento. No entanto, a verdade é que, em geral, as mulheres são mais tolerantes do que os homens. Falta a eles aquela santa paciência que tornava a minha antiga vizinha tão admirada.
Há pouco tempo tive a oportunidade, melhor dizendo o azar, de confirmar essa lamentável verdade. Estava eu em casa, na minha condição de recordista mundial de fidelidade conjugal, fato que há muito deveria constar do livro dos recordes, Guiness, quando ouvi uma gritaria lá fora. Mandava o bom senso que eu nem abrisse a janela. Mas quem consegue ter bom senso quando uma mulher grita e chora do outro lado da rua? Não que eu seja dos mais corajosos. Para falar a verdade, se à noite ouço um barulho estranho no quintal, acordo minha mulher e peço para ela ir ver o que é. “Se tiver algum perigo, me avisa que eu levanto” resmungo eu, cobrindo a cabeça com o cobertor.
No entanto, lá fui eu. A essas alturas dos acontecimentos, a pobre coitada, caída no chão, já tinha levado meia dúzia de tapas e chutes. Vocês, que são tão medrosos quanto eu, sabem que o medo nos faz correr. Foi o que eu fiz, infelizmente, na direção errada. E, assim, sem querer, me vi frente a frente com o distinto casal.
Para minha total surpresa, ambos se imobilizaram e exclamaram ao mesmo tempo: “Professor!”. Ela se aproveitou da surpresa que eu involuntariamente causara e saiu correndo, no que agiu com muita sabedoria. Ele, após recuperar o fôlego, justificou-se dizendo que a companheira o havia traído oito vezes.
Oito vezes, vejam vocês! Ele bem que podia esperar até dez, que é um número mais redondo e universalmente aceito como medida. Mas não, na oitava, perdeu a paciência.
Eu estava pensando em acalmá-lo com uma adaptação da frase ouvida na infância: “Em mulher nada pega! Tomou um banho, tá limpa!” Mas eis que uma patrulhinha se aproxima nesse exato momento, e eu, finalmente recuperando o bom senso, me retiro de cena.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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