Eis que Dom Quixote veio passear por estas bandas

terça-feira, 12 de janeiro de 2016
Foto de capa

Sobre uma estante na casa da mamãe havia um livro de capa vinho encorpada que eu, vez em quando, sentava no sofá e o abria. Ele era grande e pesado, mal podia equilibrá-lo sobre minhas pernas finas. Eu me orgulhava de ter um livro assim, tão diferente dos que conhecia e daqueles que minhas amigas tinham. Além do mais, suas figuras eram engraçadas: um cavalo troncha e um cavaleiro desengonçado. Na época, mal sabia ler, apenas escutava mamãe ou vovó dizer que era uma história conhecida. Talvez, não me lembro, elas me dissessem que era um clássico da literatura. Até porque elas entendiam de livros; mamãe era bibliotecária e vovó tradutora de livros, inclusive de espanhóis. Pelo olhar e jeito das duas, percebia que ficavam orgulhosas de me verem tão entretida com a obra do espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra. E eu, mesmo sem saber ler com desenvoltura, virava as páginas da edição especial de Dom Quixote de la Mancha, certamente rara.

Alguns anos depois, li, de fato, o livro em uma coleção que minha irmã e eu ganhamos da vovó com mais de trinta volumes de clássicos da literatura juvenil. Confesso que achei a história esquisita e, com um olhar ainda de criança, não tive noção da grandiosidade da obra.

Depois, quando comecei a escrever e percorri os clássicos, reli Dom Quixote com outro olhar e constatei que aquela história que havia considerado um tanto quanto maluca era um processo criativo do autor, altamente requintado.  

E, agora, fiz questão de trazê-lo aqui. O que me fez relê-lo mais uma vez e pesquisar a respeito da história e de seu autor. E, fiquei, como sempre, maravilhada. Ah, eu tenho este defeito, se é que posso dizer que é uma falha minha, ficar encantada quando encontro preciosidades ao saber um pouco mais sobre os autores e suas obras. Será uma virtude? Pode ser. Ao me deparar com tamanha valentia dos autores para criar seus personagens, consigo perceber a criatividade e a ousadia de pessoas que decidem descortinar o imaginário e transpor suas fantasiosas ideias para uma realidade ficcional coerente e lúcida. Mais envolvida ainda fiquei quando, ao ler Dom Quixote, me deparei com um personagem inverossímil, extravagante e insensato, cuja narrativa foi tão bem construída que ultrapassou seu tempo, o início do século XVII, especificamente o ano de 1605. Sobrevoou a época da cavalaria, cavalgou sobre a história mundial para ser em 2002 escolhido pelo Clubes do Livro Noruegueses, em que participaram escritores de reconhecimento internacional, como a melhor obra de ficção da literatura mundial, além de ser considerado o primeiro romance moderno a ser editado.

A leitura de Dom Quixote de la Mancha requer cuidados e releituras. Suscita reflexões e debates. O leitor, ao perceber a particularidade da obra, vai observar a ironia com que Miguel de Cervantes y Saavedra critica a sociedade da época em cada um dos seus capítulos. Apesar de ser escrita há 400 anos, parece ser uma obra próxima de nós.

É um personagem que enfrenta com coragem e destemor o seu próprio destino. Foge do perfil dos heróis bem-sucedidos diante dos conflitos; Dom Quixote não é um vencedor. É sim, pelo contrário, um grande cavaleiro derrotado, um louco em suas ações, porém um pensador justo e sensato.

O fidalgo e sonhador Dom Quixote ou o Cavaleiro da Triste Figura, montado em seu Rocinante e ao lado do seu fiel escudeiro Sancho Pança, tem a capacidade de atrair leitores de todas as idades e culturas. Talvez por ser um sábio personagem tão esquisito e ridículo ao extremo, tem o poder de fazer seus leitores rirem e, ao mesmo tempo, pensarem nos valores humanos mais essenciais. Por isso, indico sua leitura, inclusive aos jovens.

Qual o adolescente que não quer sair mundo afora em busca de seus ideias?

Quem não guarda o espírito justiceiro na alma?

Os amantes não idealizam a pessoa amada?

Se Dom Quixote fosse escrito no século XXI seria um motoqueiro ou um caminhoneiro? Mesmo se fosse um ciclista, sonharia o sonho impossível, sofreria a angústia implacável, pisaria onde os bravos não ousam, repararia o mal irreparável, guardaria um amor à distância, enfrentaria o inimigo invencível, continuaria a lutar quando as forças se esvaíssem e alcançaria a estrela inatingível.

Ainda suponho que gostasse de escutar Imagine, a música de John Lennon, quando se sentasse à beira de um cais para descansar e fazer seus curativos.

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