Colunas
Natal guardado em folhas de veludo e tábuas de porcelana chinesa
Agora é tempo de virarmos as páginas do nosso livro, aquele em que registramos o que vivemos. Pode ser em diários, memórias ou contos. Há quem escreva biografias e romances. Ou seja através de álbuns de fotografia. Ainda há os que gostam de sentar à beira do lago para fazer o passado vir à tona. Enfim, de qualquer modo, temos em nós recordações que são como os pedacinhos de pão que João e Maria jogavam no caminho para não se perderem na floresta.
Quando menina de pernas finas e rosto comprido, fazia de conta que era pianista. Havia na casa da minha mãe-madrinha, a Mandinha, um piano de cauda preto, onde, ao lado, era montada uma árvore natal que tocava o teto. Habitavam, na casa, muitos cachorros e eles cercavam a árvores e o piano quando eu solenemente me sentava no banco e deslizava meus dedos sobre as teclas, sem ao menos saber ler partituras ou tocar de ouvido. Numa daquelas tentativas, notei que seu tampo reluzia os enfeites e as luzes coloridas da árvore de natal. Aí, tomada por espanto, curiosidade e fascinação experimentei bater nas teclas com força, só para sentir aquilo tudo com intensidade: os cachorros, as luzes, a árvore. A minha meninice. O aconchego do natal.
Hoje, mais de cinquenta anos depois, lembro-me com nitidez dos pés das pessoas durante as ceias. Meu pai-avô, o Papu, andava com os pés abertos, como se fosse um pato; meu pai-padrinho, o Bebeto, usava meias brancas, enfiadas em pés gordos. Ainda escuto o toque-toque dos sapatos de salto alto das mulheres sobre o taco de madeira encerado. Fiz questão de guardar estas lembranças em folhas de veludo azul.
Mas tenho outra relíquia mais atual, de oito anos aproximadamente, registrada em páginas de cetim, e que gostaria de mostrar a vocês. Meu marido quis fazer um natal diferente e sugeriu que distribuíssemos um kit para as famílias que moravam na rua. Dentro de um saco de papel pardo grosso coloquei sanduíches fartos de peru, queijo, alface e fios de ovos, uma fatia de bolo com frutas cristalizadas, um cacho de uva, um refrigerante e dois bombons. E os fechei com laços de fita vermelha.
Enquanto fazia os Kits, minha cachorra, Vênus, ficou ao meu lado, deitada com a cabeça sobre as patas. O que me chamou a atenção é que parecia não estar interessada em alguma migalha que caísse no chão, tive a impressão que ela estava me oferecendo presença e velando meu trabalho.
Ricardo, meu marido, o Beto, meu filho, a Vênus e eu saímos de casa de camionete, levando na mala dois engradados: um com mais de cem kits e outro com latas de refrigerante. A Vênus ia sentada ao meu lado no banco de trás, empertigada como gente. Fomos percorrendo as ruas do bairro, parando onde havia pessoas sentadas na calçada. E havia muitas! De todas as idades! Meu filho saltava do carro, cumprimentava-as e distribuía os kits com os refrigerantes. A maioria ora levantava as sobrancelhas ora sorria quando abria os sacos. E agradecia com movimentos de cabeças e acenos de mãos.
Voltamos para casa em paz e ceamos.
Hoje, virando as páginas do meu livro, olho para estas lembranças e suspiro satisfeita por tê-las aproveitado intensamente. Não sinto saudade da Mandinha, do Bebeto, do Papu, da vovó Carmem, dos cachorros, do Beto e da Vênus porque os guardo vivos dentro de mim.
Assim, a todos, desejo que encontrem nesses momentos natalinos situações que possam guardar em tábuas de porcelana chinesa!
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