Colunas
Leite derramado
1. Tudo por um Boeing
Foi um soco de derrubar cavalo. Visto do chão, o cara tinha uns três metros de altura. Se eu olhei pra moça? E quem não olharia? Mulher é um avião? Então aquilo era um Boeing 747, desses que têm até campo de golfe. Aí ele veio de novo em minha direção, mas ela o puxou pelo braço: “Deixa o franguinho em paz!” Mesmo assim ele ainda me deu dois chutes de bom tamanho, antes de ir embora. Passantes me levantaram, sangue pingando do nariz, tridentes de mil demônios me espetando as costelas. Poucos dias depois o telefone toca: “Alô, é o franguinho?” Reconheci a voz na hora. Como é que a peste tinha conseguido meu número? Me preparei para contar os maiores desaforos, mas tudo que consegui falar foi “Que bom que você ligou!”. Não é que o jumento ia passar um mês em Cuba, lutando boxe? Conversa vai, conversa vem, ela propôs nos encontrarmos “para um jantarzinho a dois”. Só doido é que aceitaria. Não consigo dar laço na gravata, de tanto que a mão treme. Nesse Riozinho de Janeiro, é claro que alguém vai nos ver. É claro que a besta-fera vai ficar sabendo. Pronto, amarrei a gravata. Lá vou eu! Um Boeing 747! Pra falar a verdade, já me considero morto, mortinho da silva, é só esperar o fim do torneio cubano.
2. O pagamento
Os olhos de Deuzete já vermelhos. O leite derramado, não adiantava mais. No quarto de Seu Vicente, William Bonner e Fátima Bernardes em voz alta. João Antônio lá em Vitória, se matando até tarde, para pagar minha faculdade. De assistente à secretária, de secretária à esposa. Em breve, seríamos também colegas de profissão. Deuzete nem namorado tinha. Já Lucinda, três ou quatro. Só eu casada. Além do mais, eu tinha falado “Não vamos fazer isso”. Insistir, não insisti, reconheço, mas falei. João Antônio telefonava: “Você aí sozinha nessa pensão...” Eu respondia: “Que sozinha! São mais cinco moças, Deuzete e Lucinda da mesma turma que eu. Além do mais, Seu Vicente é homem muito respeitador”. Viúvo, mantinha a boa fama da casa. A história da aluna denunciada por ele nunca ninguém tinha provado. Ai, meu Deus, por que deixaram aquele maldito gabarito no balcão? A gente viu, a gente pegou. Formatura à vista, as três precisando de nota. De repente, o gabarito na mão de Seu Vicente. As três iam era levar um zero, passar vergonha. Se duvidar, expulsas. Agora até Lucinda soluçava. O Jornal Nacional entrou nas amenidades finais. As duas debulhavam. Comecei a chorar também. Não adianta lastimar o leite derramado, pensei. Levantei derrubando a cadeira, enxuguei os olhos na toalha da mesa e atravessei o corredor. Fátima e William estavam dando boa noite. Entrei no quarto de Seu Vicente e fechei a porta.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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