Bilhete de "boua" noite

quinta-feira, 03 de dezembro de 2015

Ao falar de cirandas tive mais uma vez a certeza que as palavras nos deixam registros, através dos quais construímos nossa identidade. Somos o que somos pelo o que vivemos. Pelo o que escutamos, lemos ou falamos. E isso inclui as palavras que escrevemos.

O que vou escrever hoje não pode ser classificado de literatura, mas eu pego carona nas suas asas e vou falar de bilhetes. Aliás, de apenas um bilhete.

Talvez o gosto que tenho para escrever tenha raízes nos diários, nas cartas e bilhetes que escrevia quando criança. Acho que os fazia para expressar sentimentos que não conseguia mostrar. Certa vez, quando tinha uns oito anos, mais ou menos, escrevi um bilhete de “boua noite” para a minha mãe. Este, ela guardou em uma pasta de papelão no armário. Um dia, mais de cinquenta anos depois, quando comemoraria seus 80 anos, fizemos, minha irmã e eu, uma coletânea de fotos que pegamos escondidas em seus guardados. Ao abrir um número sem fim de pastas e caixas, pois mamãe tem o hábito de guardar lembranças, encontrei este bilhete. O tempo passou e deixou manchas marrons e marcas de dobras. O papel não rasgou pois era daquele “almaço pautado”, de folha mais grossa que comprávamos nas papelarias para fazer os trabalhos de colégio com letra bonita e títulos sublinhados.

Copio aqui o bilhete, respeitando os erros de ortografia e pontuação.

Mamãe querida minha douce mamãe

Eu te amo com todo o coração de criança. Eu te faço tudo por você que tenha a vida muito grande e, com muitas felicidades, que teu coração, seja só de Deus. Mamãe eu ofereço meu coração de criança par você que é aminha vida e é a própria alegria.
Eu te amo e desejo uma boua noite.
Tome o meu coração.

Tereza

Fiquei emocionada ao ver meu afeto de filha, um amor imenso que não tinha nem começo e fim. Tanto assim fiquei que emoldurei o bilhete num quadro e o pendurei na sala, ao lado da porta de entrada da minha casa em Friburgo. Apenas para lê-lo sempre que por ali passar, sem pressa.

Mais sensibilizada estou agora ao tomá-lo nas mãos e escrever sobre aquelas minhas palavras de criança.

As palavras de criança são as primeiras impressões genuínas de uma pessoa. Ah, como me lembro de Rousseau quando escreveu Emílio: o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe.

Depois que reli meu bilhete, não consegui mais escrever esta crônica. Resolvi caminhar. A cada passo fui tentando rever minhas palavras, as que usei durante a vida. Foram milhares e misturadas. Tinham espanto, alegria e desapontamentos. Tinham dor, esperança e uma vontade imensa de brincar. De gostar. De sonhar!

Quando escrevi o bilhete, mamãe o guardou em uma caixa de papelão. Protegeu-o. Talvez quisesse que aqueles meus afetos de criança ficassem preservados.  Por sorte, também consegui guardá-los dentro de mim. E, hoje, eles me movem a escrever. A dizer, mesmo com palavras tortas e truncadas, que alguns momentos podem ter a beleza de um cristal.

Minha amiga Lila, uma sensível poeta, sempre diz que a poesia salva. E eu digo que a escrita resgata as coisas boas que temos na alma.

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