Mutismo

quarta-feira, 02 de dezembro de 2015

Se pequei, foi só por pensamento, que por palavras e obras estava eu impossibilitado

Durante três dias estive praticamente sem voz. Muita gente dirá que ninguém perdeu nada com isso e eu mesmo creio que, durante esse período, poupei a humanidade de ouvir muita bobagem, barbarismo e barbaridade. No entanto, a mim a voz me faz falta. E não só a minha. Para todos nós há sempre ao menos uma outra voz sem a qual o mundo ficaria nos parecendo uma casa feita de ausências, onde o próprio vento entrasse silencioso pelas janelas, como o sopro de algum fantasma afônico.

À rouquidão, juntou-se uma tosse mal-educada, que se manifestava nas horas mais impróprias, diante das pessoas mais gradas. E um pigarro de fumante antigo, justo em mim que sempre fugi do tabaco como passarinho foge da atiradeira. Certa vez, razões inteiramente alheias à minha vontade tornaram-me possuidor de uma caixa de isqueiros. Embora com algum remorso, distribui-os entre os amigos, não sem os fazer acompanhar dos seguintes versinhos, que Camões assinaria com orgulho: "Todo fumante é um burro/ é a ciência que o diz/ e mais sou eu, que empurro/ o vício desse infeliz".  Lá se vão dez anos e até hoje nenhum dos presenteados reclamou por ter sido chamado de burro, do que eu concluo que eles concordaram plenamente com minha opinião.

Mais calado do que de costume, passei três dias sem falar mal de ninguém. Se pequei, foi só por pensamento, que por palavras e obras estava eu impossibilitado. Mesmo diante dos casos de nepotismo, roubalheira e incompetência com que diariamente nos brindam os noticiários da TV, mantive-me quieto. Para tudo balancei a cabeça, concordando e obedecendo, o que nem foi tão difícil, visto que em família venho fazendo isso desde que me casei.  Mas, estando assim recolhido a mim mesmo, comecei a pensar. Ora, talvez Deus nos tenha dado uma língua tão solta justamente para que, tagarelando, nos mantivéssemos ocupados e assim pensássemos pouco. Porque, creio que vocês concordarão comigo, quanto mais o homem pensa, mais besteira faz. Foi ou não foi preciso pensar muito para fabricar a bomba atômica? Os jumentos não pensam e, ainda que possam dar alguns coices, nunca se soube de nenhuma guerra provocada por eles.

E, entre um analgésico e uma bala de mel com própolis, o que pensava eu? Coisas vagas, que a febre é inimiga da precisão, tanto quanto a pressa é inimiga da perfeição. Mas, dos pensamentos com que me ocupei durante a mudez a que me vi involuntariamente submetido, o único que pode causar algum mal ao próximo foi o de sentar para escrever. Não é necessário ser nenhum Freud, nenhuma Brastemp para concluir que eu estava era querendo falar pelo papel, uma vez que não conseguia falar pelos cotovelos. Mas o fato é que se fico muito tempo sem ver minhas ideias arrumadas sobre o papel, começo a sentir a mesma sensação que deve experimentar um ator à procura de personagens, um centroavante que atravessa o campeonato sem fazer gol, um boxeador que há muito não leva socos na cara. 

Se Deus, antes de meu nascimento, tivesse me perguntado que dom eu queria ter aqui na Terra, eu teria pedido para saber cantar. Nem precisava ser assim um Milton Nascimento. Eu só queria vir preparado para cantar "parabéns pra você" nas festinhas de aniversário sem atrapalhar os outros. Enfim, eu teria pedido o que mais me falta: uma voz razoável. Deus, no entanto, não me perguntou nada. Mas, sendo Deus, não ia me mandar aqui para baixo de mãos vazias. Então, Ele permitiu que eu me alfabetizasse (verdade que aos trancos e barrancos e sob ceticismo geral da família e das professoras) e até que me tornasse capaz de juntar algumas palavras e, pretensiosamente, publicá-las.

O que me resta, pois, é gastar essa moeda, ainda que ela não seja de ouro nem de prata. Talvez fosse melhor para os leitores se eu, ao invés de ficar mudo, tivesse um acesso de loquacidade, e assim não pensasse em nada e muito menos em escrever. Mas, ai de nós, que nos julgamos donos do mundo, e não mandamos sequer em nossa voz e ainda menos em nosso próprio pensamento.  

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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