E se Alice tivesse celular?

domingo, 19 de julho de 2015

A 17ª edição do Salão do Livro Infantojuvenil, realizada no Rio de Janeiro em junho deste ano, homenageou os 150 anos da obra de Lewis Caroll, “Alice no País das Maravilhas”, escrita no final do século XIX, na Inglaterra. 

Quando comecei a escrever para crianças e jovens, há mais ou menos vinte anos, uma amiga da minha mãe, a escritora, por sinal também Alice, Maria Alice Barroso, me sugeriu que lesse o livro como aprendizado. 

Já o tinha lido quando minha avó deu à minha irmã e a mim uma coleção de livros clássicos da literatura infantil. Ao relê-lo, então como adulta e aprendiz de escrita, me encantei com a criativa e lúdica viagem do autor. Fui tomada pela impressão que ele se permitiu criar uma história com imaginação livre e sequência lógica dentro de um enredo fantástico, oferecendo à criança a ideia de que aquele país é real. Fazendo nascer no leitor a vontade de ir páginas adentro, num mergulho maravilhoso, para ver de perto uma criança crescer e diminuir de tamanho, um coelho branco dar ordens, além de uma infinidade de personagens como o Rei, a Rainha e o Valete de Copas.

Na época em que a história foi escrita não havia televisão, computador ou celular. As relações da criança com o mundo eram pouco ou quase nada intermediadas pela máquina. Era necessário usar as capacidades pessoais para interagir e comunicar, captar e transformar o ambiente.

Alice pensa! Analisa tudo, sem recurso algum que a auxilie a interpretar as situações. A não ser ela mesma e seus sentidos. “Quando eu for uma duquesa”, disse para si mesma (é verdade que num tom não muito esperançoso), “não vou ter nenhuma pimenta na minha cozinha. Uma sopa pode muito bem ficar boa sem nenhuma pimenta... Talvez seja a pimenta que torna as pessoas esquentadas”, continuou, muito contente de ter encontrado um novo tipo de regra, “e o vinagre que as torna azedas...”

 Alice filosofa! Num simples buraco do jardim, Lewis Caroll desvenda o universo humano. Ora vamos criança! Tudo tem uma moral, é questão de saber encontrá-la. 

Se a personagem tivesse um celular, tão logo chegasse ao fundo do poço, ligaria pra alguém para pedir ajudar. Mas sem esse apetrecho nas mãos, Alice tem que seguir em frente e se espantar, mordiscar pedacinhos da mão direita, achar graça, ficar amedrontada. Exclamar: o que vai ser de mim!

Que experiência a criança poderá ter se tiver a oportunidade de ler este clássico da literatura, refletindo sobre cada passagem da história e conversando a respeito?

E vamos lá, vivemos num universo em que a cada instante nos deparamos com o inusitado. Desbravamos o quotidiano. Construímos regras, da mesma forma que respeitamos outras. Estamos cercados de rainhas, jogadores e valetes. Será o país de Alice diferente do nosso?

... no entanto... no entanto... É bastante interessante este tipo de vida. (...) quando lia o conto de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma!

A orientação para leitura não é uma tarefa fácil; hoje, somos humanos e máquinas. Olhamos menos nos olhos do outro porque temos telefones e computadores nas mãos. Precisamos nos hominizar. E Alice é essencialmente humana; experimenta os riscos do viver e do gostar. Um enorme filhote de cachorro olhava para ela com seus olhos redondos e graúdos, esticando debilmente uma pata, tentando tocá-la. “Pobre bichinho!”, disse Alice com carinho, e fez um esforço para assobiar para ele, mas o tempo todo estava se sentindo terrivelmente amedrontada com a ideia de que ele podia estar com fome, caso em que muito provavelmente iria comê-la, apesar de todos os seus afagos.

Então, meu amigo, antes de colocar Alice no País das Maravilhas nas mãos de uma criança, é preciso lê-lo com olhos de lince, por ser um texto profundo em suas linhas e entrelinhas. 

É, acima de tudo, atual! E, possivelmente, o terceiro livro mais lido do mundo. Suas frases são passíveis de reflexão, o que me permitiria escrever um ano de colunas e, ainda assim, seriam insuficientes para analisá-las.

TAGS:

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.